Tive o prazer
de participar da reportagem da BBC da ótima Juliana Gragnani, “O que pode estar
por trás da indicação do ex-prefeito Marcelo Crivella para a embaixada da
África do Sul”. Quando a gestão Bolsonaro busca agradar a cúpula da IURD, com
quem se desgasta oficialmente desde o fim de 2020, com a nomeação de Crivella
para embaixada da África do Sul, onde teve papel de destaque na década de 1990.
Indico a leitura da reportagem.
Abraços,
Fábio Py.
⌂
O que pode estar por trás da indicação do
ex-prefeito Crivella para embaixada na África do Sul*
* Publicado originalmente em BBC News Brasil.
"A dor de ontem / Não vai vencer / Quem vive aqui / Sabe esquecer / África / África / África", canta o bispo Marcelo Crivella na canção "África", lançada no fim dos anos 1990.
Fazer esquecer "a dor de ontem" talvez
seja a principal missão de Crivella em sua possível volta à África, onde a
Igreja Universal do Reino de Deus que ele ajudou a fincar vive uma gigantesca
crise.
O ex-prefeito do Rio de Janeiro foi preso
preventivamente e afastado do cargo no ano passado acusado de chefiar um
esquema de propina. Agora, foi indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para a
embaixada do Brasil na África do Sul.
A indicação ainda depende de uma resposta positiva
do país e da aprovação do Senado brasileiro.
A tensão da Universal nos últimos meses se deu em
Angola. Segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Serviço de
Investigação Criminal do país disseram à BBC News Brasil, há provas fartas e
contundentes contra quatro integrantes da igreja, denunciados sob acusação de
crimes como lavagem de dinheiro, evasão de divisas e associação criminosa.
A igreja refutou todas as acusações, as classificou
de "fake news" e disse que os quatro membros acusados ainda não
conseguiram acesso à investigação formal. "Nem a Universal, nem seus
bispos e pastores praticaram crimes em Angola", disse à BBC News Brasil.
Crivella, que morou na África do Sul com a família
nos anos 1990, foi fundamental para a ampliação da Universal, ou IURD (Igreja
Universal do Reino de Deus), no país e nos países vizinhos.
Na opinião especialistas entrevistados pela BBC
News Brasil, o movimento de Bolsonaro visa a controlar duas crises: a da
Universal no continente africano e, especialmente, a do presidente com a
Universal.
A indicação do governo tem uma "dupla
função", diz a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, professora no
Programa de Pós Graduação em Educação da USP e pesquisadora do Cebrap. A
primeira, é ter Crivella para "tentar de alguma maneira apaziguar
possíveis levantes de outros países no continente africano" no contexto da
Universal.
A segunda está relacionada à aliança do próprio
governo com a Universal. "Mantê-la como apoio é fundamental para o governo
Bolsonaro batalhar a sua estabilização e seu crescimento na disputa pelo voto
evangélico nas eleições em 2022", afirma Teixeira.
Crise 1
Alguns anos depois da fundação da Universal em
1977, o bispo Edir Macedo começou um projeto de expansão internacional da
igreja. No continente africano, essa ampliação começou em Angola, por volta de
1991. Na África do Sul, por volta de 1993.
Crivella, sobrinho de Macedo, foi enviado ao país como
missionário para tocar a expansão, que se dava por meio da compra de espaços em
lugares onde há maior movimentação de pessoas, abertura de templos e
investimento em mídia.
"Era super importante ter alguém de confiança
que realmente investisse nesse projeto de transnacionalização. Foi Crivella
quem produziu esse primeiro processo de organização, elaboração e gestão do
crescimento institucional da IURD pelos outros países da África e dentro da
África do Sul", diz Teixeira.
"Em 1994, cheguei com minha esposa e três
filhos na cidade de Durban. Saíamos pelas ruas dando folhetos, convidando as
pessoas para a reunião na igreja", diz Crivella em um vídeo publicado em
seu canal do YouTube em 2009. Ele está ao lado da esposa, mostrando o templo da
Universal na cidade que fica no leste da África do Sul. "E logo ela [a
igreja] começou a encher. Era uma lojinha pequena dentro do mercado indiano.
Deus abençoou e se transformou numa grande catedral."
A data de chegada de Crivella no país coincide com
o fim do Apartheid, o regime de segregação racial na África do Sul. A ideia
inicial da Universal, diz lana van Wyk, professora de antropologia da
Universidade de Stellenbosch, na África do Sul, era atingir os falantes de
português, pessoas vindas de países lusófonos vizinhos - tanto que os primeiros
cultos em Joanesburgo, maior cidade do país, eram nessa língua. Wyk é autora do
livro The Universal Church of the Kingdom of God in South Africa (A Igreja
Universal do Reino de Deus na África do Sul).
"Mas, de forma inesperada, atraiu um grupo
grande de pessoas negras. A igreja saiu, então, de um bairro predominantemente
branco e se imiscuiu em regiões com população negra", afirma Wyk.
Ela lembra da presença de Crivella no país.
"Grandes multidões de pessoas compareciam a seus sermões. Ele tinha uma
reputação de homem forte de Deus, com histórico de milagres."
Para ela, a Universal se aproveitou do momento
pós-Apartheid, em que havia sentimento de esperança no país, para angariar
membros. Com seu discurso de prosperidade, deslumbrou os sul africanos
desejosos de mobilidade social e integração racial. "O momento em que a
igreja entrou na África do Sul foi bem escolhido. Foi num tempo de muita
esperança de mudança política e econômica", diz Wyk.
"Quando a Universal chegou, as pessoas
pensavam que finalmente poderiam 'usar' o poder de Deus para mudar suas vidas
de maneira prática. O Deus da igreja poderia os tornar ricos e saudáveis."
Hoje, segundo o site da Universal da África do Sul,
há 309 igrejas no país - menos que as 320 contabilizadas por Wyk na época em
que publicou seu livro, em 2014. Segundo ela, a igreja vem perdendo força na região,
com membros migrando para outras denominações pentecostais ligadas à figura de
profetas.
Ao lado das movimentações em Angola, essa
hemorragia de membros forma um cenário preocupante para a Universal no
continente. Bispos e pastores angolanos divulgaram há dois anos um manifesto
com acusações públicas contra os brasileiros da igreja, iniciando um processo
de "reforma" em Angola.
Para Teixeira, a presença de Crivella, "como
toda a experiência que teve na África do Sul, seria uma forma de ajudar na mediação
dos conflitos e pensar na contenção de danos dessa crise gravíssima" no
continente.
Voltar à África também deve cumprir um desejo
antigo de Crivella, segundo ele próprio já expressou. Em junho de 2014, em
entrevista ao jornal da Universal, a Folha Universal (n° 1.160, ano 22),
Crivella disse não ter sido "fácil viver na África em um tempo de guerra
política no fim do apartheid". "Mas agradeço muito a Deus por ter me
dado a honra de ter passado por aquelas dificuldades, que apenas nos fizeram
mais fortes."
Quando questionado se tinha vontade de se tornar
político, Crivella responde: "Confesso que não queria. Não queria mesmo. O
que eu sonhava era voltar para a África ou qualquer que fosse o país."
O sonho virou também conveniência: com a nomeação,
o ex-prefeito do Rio passa a ter foro privilegiado, e o processo a que responde
é transferido para o Supremo Tribunal Federal.
Crise 2
O envio de Crivella para a África do Sul também cai
como uma luva para Bolsonaro, que foi cobrado por lideranças da Universal pela
omissão do Itamaraty diante da crise em Angola.
Para o teólogo evangélico Fábio Py, professor do
programa de pós-graduação em políticas sociais da Universidade Estadual do
Norte Fluminense, a "jogada" de Bolsonaro é uma maneira de afagar a
crise entre ele e a igreja, que já cobrou diversas vezes posicionamento do
presidente em relação às tensões no continente africano.
"Bolsonaro percebe que não consegue resolver a
questão de Angola porque entra em questão nacional do país. Para dar outro
caminho, ele abre possibilidade de Crivella assumir a relação Brasil-África do
Sul", afirma. "É uma jogada para não perder o apoio do Macedo."
Para ele, com a indicação, Bolsonaro age para não
"desamarrar a igreja Universal" de si. "Até porque está
começando a pintar 2022. Bolsonaro começa a se armar por conta de Lula",
diz. O presidente não quer "perder a Universal, sua estrutura e o processo
de propaganda da Universal" visando às eleições.
A igreja é representada no Congresso pelo partido
Republicanos, aliado do governo.
Além disso, o eleitorado evangélico tem um peso
significativo para o presidente - e uma pesquisa Datafolha divulgada no dia 12
de maio apontou o ex-presidente Lula (PT) e Bolsonaro empatados no primeiro e
segundo turnos entre o eleitorado evangélico. Indica que o atual presidente
precisa se mexer para não perder votos com essa parcela de eleitores.
Para Teixeira, o discurso ostensivo por parte de lideranças da Universal sobre a falta "de apoio e resguardo" do Itamaraty é o que fez o governo se mexer. "É como se o governo Bolsonaro não estivesse correspondendo ao apoio da igreja, o que pode fazer com que ela repense o apoio eleitoral", diz. "A aliança estaria em risco."
Nenhum comentário:
Postar um comentário