quinta-feira, 23 de junho de 2022

"Tutto nel mondo è burla"

Fonte: Metrópoles.

"Tutto nel mondo è burla" 

Milton Lahuerta* 

Roberto Schwarz nos deu uma chave analítica definitiva quando colocou no centro da interpretação da sociedade brasileira a escravidão, agregando à violência que lhe é constitutiva o favor e as relações de dependência pessoal que ela gera. Orientada por Marx e inspirada em Antonio Cândido da "Dialética da malandragem", a reflexão de Schwarz possibilita uma abordagem que permite tratar de nossa miséria ideológica e das ambiguidades do liberalismo, sem cair em armadilhas culturalistas moralizantes, mas procurando apreender a determinação social das ideias e dos valores. Lança luz assim sobre a debilidade da ordem normativa e sobre aquilo que se convencionou chamar de "jeitinho brasileiro" (Roberto da Matta), para caracterizar a cultura política que vige no país e tratar de nossa imensa dificuldade de estabelecer regras impessoais e de efetivar a universalização da lei. No mais das vezes, diante de um ilícito, a tendência inicial é a de nos mostrarmos extremamente rigorosos e de exigirmos punição exemplar para quem o pratica, até que isso envolva alguém com quem mantemos relações pessoais ou admiramos. Nessas situações, é comum a manifestação de uma espécie de "moralidade elástica" que faz com que uma parcela expressiva dos brasileiros seja extremamente leniente com os "seus" e absolutamente rigorosa com os "outros", com os "diferentes". Esse mecanismo ideológico é constitutivo de nossa cultura política e nos permite compreender a debilidade da ordem normativa no país, traduzida no bordão que diz que aqui "tem lei que pega e lei que não pega" e pelo culto da malandragem como estilo de vida e expressão do "caráter nacional".

Essa pequena introdução se justifica em face das reações daqueles que insistiam no "mantra" de que "não tinham bandidos de estimação" e que agora mostram-se totalmente coniventes com relação ao ex-ministro da Educação e aos "pastores" que foram detidos pela PF. É notório que Milton Ribeiro, que não passa de um "homem sem qualidades", foi indicado pelo (des) presidente para cumprir rigorosamente suas ordens e para agradar sua base de apoio evangélica, em seus delírios pseudo moralistas. Há que se notar porém que, diferentemente do que parece num primeiro momento, estamos diante de uma situação na qual os verdadeiros "bandidos", mais até que os pastores salafrários e o ex-ministro metido a pistoleiro, com Ciro Nogueira no comando, articulam-se com prefeitos, transformando as gordas verbas do FNDE num meio de encher os bolsos -- os seus e o dos aliados. O nome disso é desvio de função e apropriação indébita do Fundo Público. E sem sombra de dúvida pode ser enquadrado como um caso de corrupção em larga escala e de formação de quadrilha. O problema é que o chefe dessa quadrilha é justamente o (des) presidente, que orientou o ex-ministro pistoleiro a dar um atendimento especial aos "pastores" salafrários, com quem, inclusive, ele se encontrou dezenas de vezes no palácio do governo. Como medida para tentar se blindar e para manter o "discursinho" de que em seu "governo" não há corrupção, o (des) presidente decretou 100 anos  de sigilo sobre esses seus encontros com os "pastores" e, depois de dizer que "queimava a cara" pelo ex-ministro, jogou-o aos leões como se tudo tivesse ocorrido por falha exclusiva dele!

Haja "moralidade elástica" para seus apoiadores continuarem a justificar tanto descalabro! 

* Milton Lahuerta é professor de Teoria Política na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara. É autor de inúmeros artigos, capítulos de livros e coletâneas nas áreas de pensamento social brasileiro, sociologia dos intelectuais e teoria política. Publicou, em 2014, o seu "Elitismo, autonomia, populismo - Os intelectuais na transição dos anos 1940" pela editora Andreato.

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