sábado, 6 de agosto de 2022

Relatos da comunidade doméstica

 


Relatos da comunidade doméstica

 

Carlos Abraão Moura Valpassos*

 




O Brasil está em uma crise profunda às vésperas das eleições presidenciais de 2022, quando decidiremos não apenas quem será o chefe do executivo, mas também os rumos de nossa estranha democracia. O chefe do Blog, Professor George Coutinho, enquanto cientista político, certamente espera que este espaço seja utilizado para discutir essas questões. Todavia, enquanto baixista propagador do punk da costa oeste americana pela planície goitacá, ele tem alma artística generosa e paciência dilatada – e aceita as transgressões e digressões que por vezes apresento. Este texto é mais um exemplo disso.

A primeira semana de agosto foi inusitada. Foram os últimos dias para receber trabalhos dos estudantes que permaneceram ativos nesse primeiro semestre de retomada das atividades presenciais – receber, corrigir e travar batalhas homéricas para inserir as notas em um sistema com uma estabilidade que merecia classificação de transtorno psiquiátrico. Como se não bastasse, a vida doméstica, que ficou extremamente mesclada às atividades laborais ao longo dos últimos anos, estava em dias premiados. 

Moro em uma casa com um pequeno quintal e três cachorros, o que por si só seria suficiente para proporcionar muita emoção. O final de semana foi marcado pelo retorno de uma figura que andava sumida, mas que se faz notar quando visita a casa. Bruce é o morcego que fica voando de um lado para o outro no quintal no início das noites, mas que, de tempos em tempos, resolve voar também para dentro de casa. Quando ele faz isso, a bagunça é grande: folhas, sementes e alguns pedaços de galhos que ele gosta de saborear enquanto durmo. O que me resta é solicitar que o hóspede seja menos bagunceiro e começar os dias varrendo e passando pano no chão enquanto Bruce dorme em alguma árvore da rua.

Na quarta-feira o dia começou com a faxina demandada por Bruce, que não deve ter passado muito tempo por aqui, apenas o suficiente para proporcionar pouco estrago. Organizei tudo e comecei a ler a tese que seria avaliada naquela tarde. Estava deitado na rede da sala há algumas horas lendo a tese quando, por volta das 9 horas da manhã, a paz do lar desmanchou-se no ar. July, a cadela autoritária que impõe suas regras em nosso espaço doméstico, entrou na sala derrubando tudo que estava pela frente enquanto perseguia algo que eu não conseguia identificar. Independente do que fosse aquele ser, o importante era salvá-lo e, com ele, salvar também a casa. Pulei da rede e afastei July, furiosa com minha intervenção, enquanto o que se revelou um calango (tropidurus torquatus) correu para trás de um pilão de madeira. July queria derrubar o pilão para continuar sua caçada, mas foi impedida por mim. Coloquei todo mundo (July, Smeagol e Valente) para o quintal e facilitei a saída do calango – que achou melhor permanecer onde estava. Passado algum tempo, ninguém mais lembrava que o calango estava atrás do pilão – nem eu – e a vida retomou seu ritmo normal. 

Enquanto continuava a leitura da tese, um pensamento me ocorreu: será que em algum momento da vida Malinowski teve que parar de ler ou escrever para impedir que uma cadela matasse um calango? Duvido que isso tenha acontecido na casa em que Malinowski e Elsie moravam na Itália. Mesmo que existissem calangos por lá, a minha imagem idealizada de Malinowski não é compatível com questões tão ordinárias. Talvez Gilberto Freyre tenha observado alguma cena semelhante em sua casa em Apipucos, mas não creio que tenha se levantado da poltrona para intervir – é provável que a experiência teria impulsionado um novo livro intitulado “Cachorros & Calangos”. 

Digressões à parte, retomei a leitura da tese e logo depois me desloquei da rede para o computador, pois a banca aconteceria remotamente. Passei a tarde no evento virtual e, ao final do dia, já não lembrava do drama doméstico. Apenas na noite de quinta lembrei do calango e fui conferir se ele ainda estava atrás do pilão. Era possível ver seus contornos e algumas partes do seu corpo imóvel. Não era possível saber se estava morto, mas parecia estar. Aquele estado de inércia, no entanto, poderia ser uma habilidade de calango desconhecida por mim. Como as noites não são períodos adequados para lidar com questões tão tensas, decidi deixar o Jim por ali e resolver a questão nos primeiros raios de sol da sexta-feira.

Quando o dia amanheceu, retirei o pilão do lugar e vi que Jim permanecia imóvel. Senti uma certa culpa, mas sabia que meus conhecimentos de anatomia calanga não teriam sido úteis. Sem saber ao certo o que fazer com o corpo, decidi que a primeira providência seria tirá-lo dali. Peguei uma pá e, com o auxílio de uma vassoura, dei início à empreitada. Assim que toquei em Jim com a vassoura, ele se mexeu. Estava vivo! Não estava lá muito dinâmico, mas estava vivo. Como ele não correu, coloquei ele na pá e conduzi até o quintal, onde, com cuidado, o deixei em cima do muro, para que pegasse sol. Lembrei que os lagartos são seres pecilotermos e que, por ter passado tanto tempo na sombra e em contato com o chão frio, provavelmente ele precisava de sol para se aquecer. Em cima do muro Jim primeiro se esticou e pareceu ampliar seu corpo para ter uma superfície de maior contato com o sol. Em uma perspectiva humana, ele parecia feliz. Depois, no entanto, ficou mais caidinho e permaneceu quieto ali. Coloquei água para ele, mas isso não impulsionou qualquer reação. Pensei que aqueles poderiam ser os últimos momentos de Jim e, então, percebi que ele me olhava. Ele não podia reagir a nada que eu fizesse, pois mal se mexia, mas seu olhar era contemplativo, não transmitia qualquer medo. Fiquei perto e, com o dedo, deixei uma gota d’água cair na cabeça dele, para ver se ele bebia. Ele apenas mexeu a cabeça e me olhou com uma expressão de “por que você fez isso?”.

Por mais de uma hora Jim permaneceu parado, no mesmo lugar onde o coloquei. Nunca estive tão perto de um calango que se prostasse de modo que eu pudesse observá-lo em detalhes, percorrendo as variações de sua pele, as diferentes tonalidades de seu corpo e as dobras de sua cabeça. O que mais me tocou, todavia, foi o olhar: tão humano e ao mesmo tempo tão diferente. Impossível saber o que Jim estava a ver, muito menos a forma como ele via e o tipo de sensações que tudo isso despertava nele. Aquele outro, tão outro, estava ali, na minha frente, e por horas minhas preocupações se concentraram nas possibilidades da continuidade da vida daquela pessoa de olhar tão fascinante. 

Eu temia que os bem-te-vis, predadores alados, carregassem Jim para o trágico fim da cadeia alimentar. Naquela manhã, todavia, os bem-te-vis não estavam de prontidão, o que me tranquilizou. As formigas também não estavam perturbando e a ecologia do quintal parecia estar a favor de Jim. Então, quando o sol já se fazia sentir com intensidade, comecei a me preocupar se aquilo não faria mal para ele. Antes que eu decidisse por qualquer coisa, Jim se encarregou de sair da inércia e continuar sua vida calanga. 

Gosto de pensar que ele retornou para o poste de luz, onde os calangos do quintal parecem morar, e que lá foi recebido por seus companheiros de espécie. Ao mesmo tempo, penso em como projeto minhas noções humanas para compreender e deturpar a vida calanga de Jim. Ele não vai contar a experiência que tivemos e tampouco escreverá um texto narrando sua fuga. No mundo de Jim, eu já não existo – se é que existi em algum momento -, mas isso não diminui em nada o efeito que aquele olhar despertou em mim. A alteridade máxima se manifestou ali e foi captada com uma profunda empatia. O que será que Malinowski diria sobre isso? Melhor não saber e parar por aqui, pois preciso limpar a bagunça deixada por Bruce.

 

 

 

 

Professor de Teoria Antropológica 

Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense

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