segunda-feira, 5 de agosto de 2024

A eleição venezuelana de 2024 - Luis Felipe Miguel

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A eleição venezuelana de 2024**

Luis Felipe Miguel***

Somente os muito crédulos aceitam que as eleições na Venezuela foram limpas. A questão não é a discrepância com uma apuração privada paralela, um argumento obviamente sem pé nem cabeça e que aparece nas narrativas dos defensores de Maduro como maneira de desqualificar a crítica.

Vamos olhar para os percentuais quase redondos dos candidatos, implausíveis. Ou para o presidente venezuelano anunciando precocemente sua vitória, com percentuais exatos, faltando ainda um quinto das urnas a serem totalizadas. Ou para a ausência de apresentação das atas. Ou para o veto a observadores externos, quando seria fundamental para o regime garantir uma aparência de total lisura no processo.

Sem falar nas sucessivas investidas contra a oposição e no alinhamento quase ostensivo da justiça eleitoral ao governo.

Breno Altman, na Folha de ontem, disse que “o sistema eleitoral da Venezuela já foi elogiado por Jimmy Carter como um dos mais sólidos do mundo”. Esqueceu de dizer que a declaração foi feita em 2012. E que o Centro Carter, criado pelo ex-presidente estadunidense e especializado em acompanhamento de eleições, afirmou que a eleição de agora “não se adequou a parâmetros e padrões internacionais de integridade eleitoral e não pode ser considerada democrática”.

O fato de que a oposição as Maduro é hegemonizada por títeres do imperialismo estadunidense não muda essa realidade: até onde vista alcança, é muito mais provável que o pleito tenha sido fraudado.

Nada disso justifica, é claro, que uma potência estrangeira – os Estados Unidos – proclame que outro candidato foi o vencedor.

Não há como “reconhecer” uma vitória que não foi proclamada por nenhuma instituição oficial. O que os Estados Unidos e seus aliados tentam fazer, ao proclamar Edmundo González como vitorioso, é invalidar a soberania venezuelana e abrir caminho para um golpe.

É uma reedição da palhaçada com Juan Guaidó, proclamado “presidente” da Venezuela em 2019 por Donald Trump.

A posição oficial do Brasil está correta. Trata-se de exigir do governo venezuelano que apresente as atas e estabelecer um caminho de negociação para encontrar saídas para a crise – e para a construção de uma Venezuela soberana e democrática.

Não é o que querem os Estados Unidos. Nem, de fato, os defensores incondicionais de Maduro.

Vale a pena ler a entrevista do embaixador Benoni Belli, representante do Brasil na OEA, à Folha de S. Paulo.

Com o tato necessário, ele põe o dedo na ferida, explicando porque a OEA não foi capaz de aprovar uma resolução sobre a Venezuela (o texto apresentado pelos Estados Unidos foi rejeitado):

“Houve quem tentou criar uma falsa dicotomia entre defensores e detratores da democracia. Esse tipo de narrativa pode servir aos propósitos de ganhar pontos na política doméstica de alguns países, mas não se coaduna com a diplomacia multilateral, que exige negociação e busca de caminhos comuns”.

É preciso simultaneamente pressionar e respeitar o governo venezuelano.

A direção do PT lançou uma nota equivocada e Lula errou na declaração sobre a “normalidade” da situação. Mas a posição oficial do Brasil, expressa pelo Itamarati, pela representação na OEA e pelo comunicado conjunto com Colômbia e México, é correta.

A mesma imprensa que condena o governo por qualquer declaração mais enfática contra Israel quer hostilidade aberta contra a Venezuela – como se uma suspeita de fraude eleitoral fosse mais grave que um genocídio e como se não tivéssemos que ser cautelosos nas relações com um país vizinho. Mas é só vontade de ficar a serviço do imperialismo.

* Disponível em: https://chappatte.com/en/images/a-very-close-venezuelan-election, acesso em 05 de agosto de 2024.

** Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor em 05 de agosto de 2024: https://www.facebook.com/luisfelipemiguel.unb  

*** Professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). Está lançando este ano, pela editora Boitempo, o seu "Marxismo e política: modos de usar".

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