Jefferson Nascimento*
A memória individual possui sua singularidade a partir do processo histórico de vida do indivíduo que, a partir de sua inserção nas relações sociais e sua posição social, realiza a evocação de lembranças que estão em sua consciência virtual. Tanto as lembranças quanto os mecanismos de evocação são de caráter social [...] A memória social das classes e grupos sociais é seletiva, da mesma forma que a memória individual e os mecanismos de ativação, tal como já colocamos, também são os mesmos [...] existe uma luta pela memória e os principais agentes desta luta são as classes sociais e os seus representantes intelectuais. Tanto na esfera das representações cotidianas (“senso comum”) quanto na do pensamento complexo, esta luta se faz presente. Tal como colocou certa vez Adorno, o esquecimento facilita a reprodução [...] A luta pela memória é, portanto, simultaneamente, teórica e prática (Nildo Viana, 2006).[i]
O argumento de
que não é hora de procurar culpados para
não politizar as enchentes do Rio Grande do Sul é, em si, um posicionamento
político. Uma das mais eficazes formas de fazer política é ocultar os conteúdos
político, econômico e social de uma dada situação, naturalizando-a. Naturalizar
fatos sócio-históricos é uma estratégia para esvaziar o debate e proteger o status quo e suas posições hegemônicas.
Respeitando
todas as crenças, não se trata de pessoas abandonadas pelas graças ou
castigadas pela fúria divina e, sim, da desgraça produzida pela submissão das
necessidades humanas aos interesses dos agentes do “mercado”. As consequências de uma catástrofe
causada por forças da natureza não são apenas uma questão natural e nem podem ser resumidos como infortúnios oriundos de fatores transcendentais. O desmatamento, a queima de combustíveis
fósseis, as diversas formas de poluição, a ocupação e os usos do solo ocorrem
em um processo histórico movido por fatores econômicos e políticos. Logo,
nessas catástrofes as pessoas são mais ou menos afetadas por efeitos que podem
ser minimizados ou maximizados politicamente.
Portanto, não
se pode politizar o que já é político. O ponto central é como e para quê o
debate e a disputa de versões vão ser mobilizados. Ele visa compreender os
processos políticos que foram realizados e/ou negligenciados piorando o drama
das pessoas? Visa obter apoio para interesses específicos? Sua interdição visa
obscurecer ocorrências sociais, econômicas e políticas que definiram os
contornos da catástrofe? É claro que outras perguntas podem ser feitas, mas
estas são exemplos do esforço para compreender o que está por trás de certas
posições e discursos
É
indispensável discutir vários elementos não-naturais sobre a grave situação do
Rio Grande do Sul. Desde fatores globais e estruturais (a relação entre o
modo de produção capitalista e as mudanças climáticas) aos fatores nacionais,
regionais e locais (necessidade e rigidez dos licenciamentos
ambientais, disponibilização de recursos públicos para manutenção de
barragens, investimento em Defesas Civis e Corpo de Bombeiros e produção de
políticas públicas com base em evidências científicas).
Este último,
depende de um pacto social contra o negacionismo, que se apresenta por meio de
diversos movimentos (antivacinas, terraplanismo, negação da emergência
climática, etc.) e amplia sucessivamente seu alcance com a cumplicidade das
corporações proprietárias das redes sociais, produzindo cada vez mais mortes.
Desafortunadamente, tais movimentos negacionistas não se restringem à sociedade
civil e orientam a ação de diversas autoridades públicas, por adesão
ideológica, aceno ao mercado ou à determinada base eleitoral.
Entretanto, o
crescente alcance do negacionismo não é um acidente histórico. Em 2021, tratei
em parceria com Leonardo Sacramento da relação de reforço mútuo e de
convergência ativa entre negacionismo e racionalidade neoliberal – texto
publicado neste blog e no site A Terra é Redonda. Como dissemos no
referido artigo: “[...] o neoliberal precisa negar a História e o saber
científico contextualizado porque seus fundamentos não resistem à análise séria
dos fatos.” Os componentes da racionalidade neoliberal dependem de uma base
a-histórica, da negação de verdades sistêmicas e da manipulação das noções de
razão, identidade e objetividade. Caso contrário, não seria possível sustentar
o neoliberalismo como doutrina. Hayek[ii]
teoriza que há uma esfera natural, uma esfera artificial produzida pela
iniciativa humana e ambas são intermediadas por uma ordem espontânea (nem
natural nem artificial) oriunda de ação humana livre de desígnio. O mercado, parte dessa ordem espontânea, teria sido instituído independente de vontade ou
intencionalidade e atuaria como instância reguladora capaz de corrigir
problemas sociais.
A ortodoxia como orientação da política econômica é sustentada pela crença na capacidade do mercado resolver as grandes questões humanas, cabendo ao Estado conferir previsibilidade aos agentes e definir com clareza os parâmetros garantidores da liberdade econômica. Com isso, as políticas públicas passam a ser focalizadas e os investimentos públicos limitados nas áreas sociais pelo temor do déficit. Logo, a submissão das necessidades humanas aos interesses econômicos, preconizada pela doutrina neoliberal, deve estar no centro das discussões para compreender a gravidade de tragédias relacionadas a fenômenos naturais.
O Governo
Dilma Rousseff (2011-2016), desde a tragédia na Região Serrana do Rio de
Janeiro (2011), estimulou pesquisas e aumentou investimentos em prevenção e
reação às tragédias climáticas, resultando na modernização dos sistemas de
Defesa Civil no Brasil. O mesmo governo financiou uma série de estudos para
projetar os impactos das mudanças climáticas no Brasil. Era o programa Brasil 2040, iniciado em 2013, cujas
pesquisas custaram R$3,5 milhões e identificaram a tendência de chuvas acima do
normal na região Sul e escassez no Norte do país. No entanto, o início do
segundo mandato de Dilma marcou a capitulação total à ortodoxia neoliberal de
Joaquim Levy, levando ao abandono do programa em 2015.[iii]
O Ministério do Meio Ambiente atual, liderado por Marina Silva,
demonstrou a intenção de retomar o programa.
Passamos pelos
governos Temer e Bolsonaro, convivendo com eventos que demonstraram a gravidade
das mudanças climáticas, sem qualquer projeto ou programa preventivo. Ainda
mais grave é que os recursos federais para a prevenção de enchentes encolheram
80% desde 2015, quando a ortodoxia neoliberal retomou a hegemonia sobre a
política econômica sem oposição. Para ser mais direto, o orçamento para esta
finalidade foi R$6,8 bilhões em 2014, com o neoliberal Levy caiu para R$2,9
bilhões. Chegando a R$1,6 em 2019 e R$1,3 bilhões em 2021 e 2022 sob
Guedes/Bolsonaro. O orçamento executado em 2023, enviado ao Congresso por
Guedes/Bolsonaro, previu R$1,4 bilhões para 2023. O atual governo elevou para
R$2,6 bilhões o orçamento para prevenção de enchentes de 2024.[iv]
Ainda assim, muito longe do patamar de 2014. Ou seja, a fúria do clima é
agravada pela sanha do mercado financeiro sobre o orçamento público com a
conivência de governos que aceitam que as necessidades humanas sejam submetidas
aos interesses rentistas.
Não ficam
atrás os governos estaduais e as prefeituras gaúchas. Eduardo Leite não só
reduziu recursos para prevenção, como também retirou praticamente todo o
orçamento para investimento nas Defesas Civis, enfraquecendo a capacidade de
resposta em situações emergenciais como essa. Paradoxalmente, um ávido defensor
do neoliberalismo justifica que a dívida do estado limita os recursos para
prevenção de enchentes. Soa irônico que um neoliberal convicto reclame de um
dos fundamentos da política econômica neoliberal. Ademais, Leite tenta
desvincular a tragédia das alterações de 480 normas do Código Ambiental
estadual feitas por sua gestão em 2019 e alinhadas à política ambiental federal
de Ricardo Salles/Bolsonaro. Novamente, as necessidades humanas foram submetidas
a interesses econômicos. Sobre isso:
O
diretor científico e técnico da Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao
Ambiente Natural), Francisco Milanez, nega que a sociedade civil e entidades
ambientalistas tenham participado da construção do novo código. Biólogo e
pós-graduado em análise de impacto ambiental, ele afirma que as mudanças foram
tomadas de forma unilateral, encabeçadas pelo governador [...] Milanez
conta que o antigo Código Ambiental levou quase dez anos para ser elaborado e a
primeira tentativa de mudança, a pedido de Leite, era em regime de urgência,
mas foi impedida pela Justiça. O processo então ocorreu 75 dias depois com a
aprovação da Assembleia Legislativa [...] A legislação original foi construída, segundo ele, em conjunto com as
federações das indústrias e da agricultura, entidades ambientais e sociedade
civil [...] Milanez critica também a
sanção do governador, neste ano, de lei que flexibiliza a construção de
barragens e outros reservatórios de água dentro de áreas de proteção
permanente. De acordo com o ambientalista, essa medida é preocupante por poder
afetar o fluxo natural da água, o que pode gerar cheias de rios e chuvas mais
concentradas.[v]
Na mesma
linha, o prefeito bolsonarista de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB-RS), e seu
vice, que presta serviços para a
produtora negacionista Brasil Paralelo, zeraram os recursos para prevenção de
enchentes em 2023. Melo justifica que, apesar do que consta no Portal da
Transparência, os gastos para evitar enchentes são transversais e cita outras
obras que teriam efeito preventivo realizados pelo Departamento Municipal de
Água e Esgoto (DMAE). Contudo, não explicou o impacto da redução de 47,6% na
força de trabalho do setor (de 2.049 para 1.072 servidores). A precarização em
um serviço público muitas vezes antecede um processo de privatização e, com
menos servidores, menos recursos e pressão para superávit (embora não seja
ainda uma empresa privada), o resultado é:
Pesquisadores
confirmam que a falta de manutenção colocou o sistema de prevenção em risco.
Parafusos, borrachas e trilhos se deterioraram ao longo da estrutura de
proteção. “Não é uma crença, é uma constatação. Falta manutenção no sistema.”
(Fernando Dornelles, professor e doutor em Recursos Hídricos e Saneamento
Ambiental da UFRGS).[vi]
Sem qualquer
autocrítica, porta-vozes dos agentes do mercado financeiro na imprensa
brasileira não deixaram de cobrar pela meta fiscal e de fazer prognósticos
ameaçadores em caso de aumento do déficit.[vii]
Novamente, segundo esses porta-vozes, os balizadores do conteúdo e da forma de
socorro ao Rio Grande do Sul deveriam estar submetidos aos compromissos
ortodoxos definidos pelos agentes financeiros. Que, aliás, estavam satisfeitos
com a fidelidade de Eduardo Leite a esses compromissos, garantindo três anos de
vigorosos superávits nas contas públicas estaduais: em 2021, foram R$2,54
bilhões; em 2022, R$3,34 bilhões; e R$3,61 em 2023.[viii]
Esses bilhões foram alcançados por meio de reformas, privatização da Companhia
Riograndense de Saneamento (Corsan), adesão ao Regime de Recuperação Fiscal
(RRF) e muita restrição nos investimentos
sociais - incluindo prevenção às enchentes e verbas de custeio e investimento à
Defesa Civil, como vimos.
É necessário investigar os atos e omissões que ampliaram o drama da população.
Além disso, é preciso compreender as razões para que a mobilização e a comoção
em torno desse triste episódio tenham sido muito maiores que outras tragédias
causadas pela chuva. Respeitosamente, é necessário entender o nível e os
determinantes da comoção a despeito de tragédias serem sempre dramáticas,
incomparáveis e não hierarquizáveis.
Voltando ao
Rio Grande do Sul: até esse momento, foram 116 mortos, 756 feridos, 143
desaparecidos e mais de 400 mil pessoas fora de suas casas nas enchentes do Rio
Grande do Sul. Em 2011, foram 900 mortos e mais de 35 mil desabrigados na
Região Serrana do Rio de Janeiro. Em 1967, deslizamentos em Caraguatatuba (SP)
mataram entre 450 e 500 pessoas. No mesmo ano, deslizamentos mataram 300
pessoas e feriram mais de 25 mil no Rio de Janeiro. Recentemente, foram 241
mortos em deslizamentos em Petrópolis (RJ) em 2022. Há, pelo menos, três
especificidades que devem ser consideradas.
1) Duração. As tragédias com mais mortos
foram eventos súbitos cuja destruição ocorreu de modo concentrado em um dia ou
período de dia. A tragédia do Rio Grande do Sul é uma daquelas em que o drama
se prolonga por dias e dias. Esse tipo de situação é menos comum, como os 129
mortos na região metropolitana do Recife e zona da mata de Pernambuco em maio
de 2022 e os 74 mortos no estado de Minas Gerais em janeiro de 2020.
2) Extensão. A dimensão já impactada no Rio
Grande do Sul é inédita, o que mais se aproxima é o acontecimento de Minas
Gerais (2020). Na ocasião, mais de 256 cidades decretaram estado de emergência
ou calamidade pública e 53 mil pessoas foram afetadas (desalojadas, desabrigadas
e feridas). Até o momento, 437 dos 497 municípios gaúchos e mais de 1,9 milhões
de pessoas foram afetados. Ou seja, quase todo estado está debaixo d’água e
isso demanda muito mais mobilização externa (outros estados, governo federal e
até países vizinhos) para enfrentar a situação.
3) Perfil Social. Até pela extensão, essa
tragédia coloca todo e qualquer brasileiro à frente do espelho. Não se trata
mais de impactos circunscritos às habitações em área de risco (margens e
proximidades de rios, encostas de morro, etc.) que, quase sempre, concentram as
vítimas em determinados grupos sociais empobrecidos e marginalizados. No Rio
Grande do Sul, um dos técnicos de futebol mais bem pago do país precisou ser
resgatado no hotel em que reside, jogadores de futebol de clubes da Série A
(Grêmio, Internacional e Juventude) tiveram suas casas inundadas, deputado
estadual negacionista fez vídeos mostrando que a rua de sua casa se tornou um
rio, estádios de futebol, centro de treinamento, aeroporto, pontes e rodovias
foram alagados e/ou destruídos pela força das águas.
Estamos,
portanto, diante de um evento cuja duração já está entre as maiores e ainda não
temos previsão de solução, a quantidade de municípios afetados é maior e atinge
quase todo o estado e, dessa vez, as vítimas não se restringem quase
exclusivamente aos pobres, cuja ineficiência das políticas públicas e a
negligência das autoridades já foram normalizadas.
Dessa vez,
todos fomos obrigados a olhar no espelho e, em tese, deveríamos nos sentir
impelidos a refletir sobre a importância da ciência e os riscos da atual
dinâmica da apropriação econômica. Tais análises sistêmicas ocorrerão
minoritariamente, mas não devemos nos furtar de, pelo menos, elaborar uma
questão mais imediata: depois da pandemia, de Mariana (MG) e de diversas
tragédias relacionadas às chuvas, quantas cidades mais irão submergir e quantos
corpos mais vamos procurar até compreender a inconsequência das políticas
neoliberais que paralisam as funções sociais do Estado?
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[i] Citação extraída do artigo “Memória e Sociedade: uma
breve discussão teórica sobre memória social”, publicado na Revista Espaço
Plural, disponível em: https://saber.unioeste.br/index.php/espacoplural/article/view/483/397
[ii] Livro O caminho da Servidão, lido na versão em espanhol: El camino de la servidumbre, Alianza
Editorial, 2007.
[iii] https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2024/05/10/o-programa-que-projetou-cheias-no-sul-e-acabou-engavetado-no-governo-dilma-perdemos-tempo.ghtml
[iv] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/orcamento-para-prevencao-a-desastres-caiu-quase-80-na-ultima-decada/
[v] https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2024/05/leite-mudou-quase-500-normas-ambientais-em-2019-especialistas-criticam-gestao.shtml
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