sexta-feira, 10 de maio de 2024

Com todo respeito e solidariedade aos gaúchos, não podemos esquecer os fundamentos econômicos, sociais e políticos desta tragédia

Fonte: postagem no Instagram dos perfis midianinja e designativista.

Jefferson Nascimento*

 

A memória individual possui sua singularidade a partir do processo histórico de vida do indivíduo que, a partir de sua inserção nas relações sociais e sua posição social, realiza a evocação de lembranças que estão em sua consciência virtual. Tanto as lembranças quanto os mecanismos de evocação são de caráter social [...] A memória social das classes e grupos sociais é seletiva, da mesma forma que a memória individual e os mecanismos de ativação, tal como já colocamos, também são os mesmos [...] existe uma luta pela memória e os principais agentes desta luta são as classes sociais e os seus representantes   intelectuais.   Tanto   na   esfera das representações cotidianas (“senso comum”) quanto na do pensamento complexo, esta luta se faz presente. Tal como colocou certa vez Adorno, o esquecimento facilita a reprodução [...] A luta pela memória é, portanto, simultaneamente, teórica e prática (Nildo Viana, 2006).[i] 

 

O argumento de que não é hora de procurar culpados para não politizar as enchentes do Rio Grande do Sul é, em si, um posicionamento político. Uma das mais eficazes formas de fazer política é ocultar os conteúdos político, econômico e social de uma dada situação, naturalizando-a. Naturalizar fatos sócio-históricos é uma estratégia para esvaziar o debate e proteger o status quo e suas posições hegemônicas.

Respeitando todas as crenças, não se trata de pessoas abandonadas pelas graças ou castigadas pela fúria divina e, sim, da desgraça produzida pela submissão das necessidades humanas aos interesses dos agentes do “mercado”. As consequências de uma catástrofe causada por forças da natureza não são apenas uma questão natural e nem podem ser resumidos como infortúnios oriundos de fatores transcendentais. O desmatamento, a queima de combustíveis fósseis, as diversas formas de poluição, a ocupação e os usos do solo ocorrem em um processo histórico movido por fatores econômicos e políticos. Logo, nessas catástrofes as pessoas são mais ou menos afetadas por efeitos que podem ser minimizados ou maximizados politicamente.

Portanto, não se pode politizar o que já é político. O ponto central é como e para quê o debate e a disputa de versões vão ser mobilizados. Ele visa compreender os processos políticos que foram realizados e/ou negligenciados piorando o drama das pessoas? Visa obter apoio para interesses específicos? Sua interdição visa obscurecer ocorrências sociais, econômicas e políticas que definiram os contornos da catástrofe? É claro que outras perguntas podem ser feitas, mas estas são exemplos do esforço para compreender o que está por trás de certas posições e discursos

É indispensável discutir vários elementos não-naturais sobre a grave situação do Rio Grande do Sul. Desde fatores globais e estruturais (a relação entre o modo de produção capitalista e as mudanças climáticas) aos fatores nacionais, regionais e locais (necessidade e rigidez dos licenciamentos ambientais, disponibilização de recursos públicos para manutenção de barragens, investimento em Defesas Civis e Corpo de Bombeiros e produção de políticas públicas com base em evidências científicas).

Este último, depende de um pacto social contra o negacionismo, que se apresenta por meio de diversos movimentos (antivacinas, terraplanismo, negação da emergência climática, etc.) e amplia sucessivamente seu alcance com a cumplicidade das corporações proprietárias das redes sociais, produzindo cada vez mais mortes. Desafortunadamente, tais movimentos negacionistas não se restringem à sociedade civil e orientam a ação de diversas autoridades públicas, por adesão ideológica, aceno ao mercado ou à determinada base eleitoral.

Entretanto, o crescente alcance do negacionismo não é um acidente histórico. Em 2021, tratei em parceria com Leonardo Sacramento da relação de reforço mútuo e de convergência ativa entre negacionismo e racionalidade neoliberal – texto publicado neste blog e no site A Terra é Redonda. Como dissemos no referido artigo: “[...] o neoliberal precisa negar a História e o saber científico contextualizado porque seus fundamentos não resistem à análise séria dos fatos.” Os componentes da racionalidade neoliberal dependem de uma base a-histórica, da negação de verdades sistêmicas e da manipulação das noções de razão, identidade e objetividade. Caso contrário, não seria possível sustentar o neoliberalismo como doutrina. Hayek[ii] teoriza que há uma esfera natural, uma esfera artificial produzida pela iniciativa humana e ambas são intermediadas por uma ordem espontânea (nem natural nem artificial) oriunda de ação humana livre de desígnio. O mercado, parte dessa ordem espontânea, teria sido instituído independente de vontade ou intencionalidade e atuaria como instância reguladora capaz de corrigir problemas sociais.

A ortodoxia como orientação da política econômica é sustentada pela crença na capacidade do mercado resolver as grandes questões humanas, cabendo ao Estado conferir previsibilidade aos agentes e definir com clareza os parâmetros garantidores da liberdade econômica. Com isso, as políticas públicas passam a ser focalizadas e os investimentos públicos limitados nas áreas sociais pelo temor do déficit. Logo, a submissão das necessidades humanas aos interesses econômicos, preconizada pela doutrina neoliberal, deve estar no centro das discussões para compreender a gravidade de tragédias relacionadas a fenômenos naturais.

O Governo Dilma Rousseff (2011-2016), desde a tragédia na Região Serrana do Rio de Janeiro (2011), estimulou pesquisas e aumentou investimentos em prevenção e reação às tragédias climáticas, resultando na modernização dos sistemas de Defesa Civil no Brasil. O mesmo governo financiou uma série de estudos para projetar os impactos das mudanças climáticas no Brasil. Era o programa Brasil 2040, iniciado em 2013, cujas pesquisas custaram R$3,5 milhões e identificaram a tendência de chuvas acima do normal na região Sul e escassez no Norte do país. No entanto, o início do segundo mandato de Dilma marcou a capitulação total à ortodoxia neoliberal de Joaquim Levy, levando ao abandono do programa em 2015.[iii] O Ministério do Meio Ambiente atual, liderado por Marina Silva, demonstrou a intenção de retomar o programa.

Passamos pelos governos Temer e Bolsonaro, convivendo com eventos que demonstraram a gravidade das mudanças climáticas, sem qualquer projeto ou programa preventivo. Ainda mais grave é que os recursos federais para a prevenção de enchentes encolheram 80% desde 2015, quando a ortodoxia neoliberal retomou a hegemonia sobre a política econômica sem oposição. Para ser mais direto, o orçamento para esta finalidade foi R$6,8 bilhões em 2014, com o neoliberal Levy caiu para R$2,9 bilhões. Chegando a R$1,6 em 2019 e R$1,3 bilhões em 2021 e 2022 sob Guedes/Bolsonaro. O orçamento executado em 2023, enviado ao Congresso por Guedes/Bolsonaro, previu R$1,4 bilhões para 2023. O atual governo elevou para R$2,6 bilhões o orçamento para prevenção de enchentes de 2024.[iv] Ainda assim, muito longe do patamar de 2014. Ou seja, a fúria do clima é agravada pela sanha do mercado financeiro sobre o orçamento público com a conivência de governos que aceitam que as necessidades humanas sejam submetidas aos interesses rentistas.

Não ficam atrás os governos estaduais e as prefeituras gaúchas. Eduardo Leite não só reduziu recursos para prevenção, como também retirou praticamente todo o orçamento para investimento nas Defesas Civis, enfraquecendo a capacidade de resposta em situações emergenciais como essa. Paradoxalmente, um ávido defensor do neoliberalismo justifica que a dívida do estado limita os recursos para prevenção de enchentes. Soa irônico que um neoliberal convicto reclame de um dos fundamentos da política econômica neoliberal. Ademais, Leite tenta desvincular a tragédia das alterações de 480 normas do Código Ambiental estadual feitas por sua gestão em 2019 e alinhadas à política ambiental federal de Ricardo Salles/Bolsonaro. Novamente, as necessidades humanas foram submetidas a interesses econômicos. Sobre isso:

O diretor científico e técnico da Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural), Francisco Milanez, nega que a sociedade civil e entidades ambientalistas tenham participado da construção do novo código. Biólogo e pós-graduado em análise de impacto ambiental, ele afirma que as mudanças foram tomadas de forma unilateral, encabeçadas pelo governador [...] Milanez conta que o antigo Código Ambiental levou quase dez anos para ser elaborado e a primeira tentativa de mudança, a pedido de Leite, era em regime de urgência, mas foi impedida pela Justiça. O processo então ocorreu 75 dias depois com a aprovação da Assembleia Legislativa [...] A legislação original foi construída, segundo ele, em conjunto com as federações das indústrias e da agricultura, entidades ambientais e sociedade civil [...] Milanez critica também a sanção do governador, neste ano, de lei que flexibiliza a construção de barragens e outros reservatórios de água dentro de áreas de proteção permanente. De acordo com o ambientalista, essa medida é preocupante por poder afetar o fluxo natural da água, o que pode gerar cheias de rios e chuvas mais concentradas.[v]

Na mesma linha, o prefeito bolsonarista de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB-RS), e seu vice, que presta serviços para  a produtora negacionista Brasil Paralelo, zeraram os recursos para prevenção de enchentes em 2023. Melo justifica que, apesar do que consta no Portal da Transparência, os gastos para evitar enchentes são transversais e cita outras obras que teriam efeito preventivo realizados pelo Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE). Contudo, não explicou o impacto da redução de 47,6% na força de trabalho do setor (de 2.049 para 1.072 servidores). A precarização em um serviço público muitas vezes antecede um processo de privatização e, com menos servidores, menos recursos e pressão para superávit (embora não seja ainda uma empresa privada), o resultado é:

Pesquisadores confirmam que a falta de manutenção colocou o sistema de prevenção em risco. Parafusos, borrachas e trilhos se deterioraram ao longo da estrutura de proteção. “Não é uma crença, é uma constatação. Falta manutenção no sistema.” (Fernando Dornelles, professor e doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental da UFRGS).[vi]

Sem qualquer autocrítica, porta-vozes dos agentes do mercado financeiro na imprensa brasileira não deixaram de cobrar pela meta fiscal e de fazer prognósticos ameaçadores em caso de aumento do déficit.[vii] Novamente, segundo esses porta-vozes, os balizadores do conteúdo e da forma de socorro ao Rio Grande do Sul deveriam estar submetidos aos compromissos ortodoxos definidos pelos agentes financeiros. Que, aliás, estavam satisfeitos com a fidelidade de Eduardo Leite a esses compromissos, garantindo três anos de vigorosos superávits nas contas públicas estaduais: em 2021, foram R$2,54 bilhões; em 2022, R$3,34 bilhões; e R$3,61 em 2023.[viii] Esses bilhões foram alcançados por meio de reformas, privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) e muita restrição nos investimentos sociais - incluindo prevenção às enchentes e verbas de custeio e investimento à Defesa Civil, como vimos.

É necessário investigar os atos e omissões que ampliaram o drama da população. Além disso, é preciso compreender as razões para que a mobilização e a comoção em torno desse triste episódio tenham sido muito maiores que outras tragédias causadas pela chuva. Respeitosamente, é necessário entender o nível e os determinantes da comoção a despeito de tragédias serem sempre dramáticas, incomparáveis e não hierarquizáveis.

Voltando ao Rio Grande do Sul: até esse momento, foram 116 mortos, 756 feridos, 143 desaparecidos e mais de 400 mil pessoas fora de suas casas nas enchentes do Rio Grande do Sul. Em 2011, foram 900 mortos e mais de 35 mil desabrigados na Região Serrana do Rio de Janeiro. Em 1967, deslizamentos em Caraguatatuba (SP) mataram entre 450 e 500 pessoas. No mesmo ano, deslizamentos mataram 300 pessoas e feriram mais de 25 mil no Rio de Janeiro. Recentemente, foram 241 mortos em deslizamentos em Petrópolis (RJ) em 2022. Há, pelo menos, três especificidades que devem ser consideradas.

1) Duração. As tragédias com mais mortos foram eventos súbitos cuja destruição ocorreu de modo concentrado em um dia ou período de dia. A tragédia do Rio Grande do Sul é uma daquelas em que o drama se prolonga por dias e dias. Esse tipo de situação é menos comum, como os 129 mortos na região metropolitana do Recife e zona da mata de Pernambuco em maio de 2022 e os 74 mortos no estado de Minas Gerais em janeiro de 2020.

2) Extensão. A dimensão já impactada no Rio Grande do Sul é inédita, o que mais se aproxima é o acontecimento de Minas Gerais (2020). Na ocasião, mais de 256 cidades decretaram estado de emergência ou calamidade pública e 53 mil pessoas foram afetadas (desalojadas, desabrigadas e feridas). Até o momento, 437 dos 497 municípios gaúchos e mais de 1,9 milhões de pessoas foram afetados. Ou seja, quase todo estado está debaixo d’água e isso demanda muito mais mobilização externa (outros estados, governo federal e até países vizinhos) para enfrentar a situação.

3) Perfil Social. Até pela extensão, essa tragédia coloca todo e qualquer brasileiro à frente do espelho. Não se trata mais de impactos circunscritos às habitações em área de risco (margens e proximidades de rios, encostas de morro, etc.) que, quase sempre, concentram as vítimas em determinados grupos sociais empobrecidos e marginalizados. No Rio Grande do Sul, um dos técnicos de futebol mais bem pago do país precisou ser resgatado no hotel em que reside, jogadores de futebol de clubes da Série A (Grêmio, Internacional e Juventude) tiveram suas casas inundadas, deputado estadual negacionista fez vídeos mostrando que a rua de sua casa se tornou um rio, estádios de futebol, centro de treinamento, aeroporto, pontes e rodovias foram alagados e/ou destruídos pela força das águas.

Estamos, portanto, diante de um evento cuja duração já está entre as maiores e ainda não temos previsão de solução, a quantidade de municípios afetados é maior e atinge quase todo o estado e, dessa vez, as vítimas não se restringem quase exclusivamente aos pobres, cuja ineficiência das políticas públicas e a negligência das autoridades já foram normalizadas.

Dessa vez, todos fomos obrigados a olhar no espelho e, em tese, deveríamos nos sentir impelidos a refletir sobre a importância da ciência e os riscos da atual dinâmica da apropriação econômica. Tais análises sistêmicas ocorrerão minoritariamente, mas não devemos nos furtar de, pelo menos, elaborar uma questão mais imediata: depois da pandemia, de Mariana (MG) e de diversas tragédias relacionadas às chuvas, quantas cidades mais irão submergir e quantos corpos mais vamos procurar até compreender a inconsequência das políticas neoliberais que paralisam as funções sociais do Estado?

 

---------

*Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política, professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro “Ellen Wood: o resgate da classe e a luta pela democracia"


[i] Citação extraída do artigo “Memória e Sociedade: uma breve discussão teórica sobre memória social”, publicado na Revista Espaço Plural, disponível em: https://saber.unioeste.br/index.php/espacoplural/article/view/483/397

[ii] Livro O caminho da Servidão, lido na versão em espanhol: El camino de la servidumbre, Alianza Editorial, 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário