Photo courtesy of Gratisography
Comecemos pelo central: o
neoliberal precisa negar a História e o saber científico contextualizado porque
seus fundamentos não resistem à análise séria dos fatos. Começar deste modo
pode parecer algum tipo de provocação, mas se trata de um diagnóstico. Não à toa,
componentes do pensamento neoliberal, como a meritocracia, a negação à atuação
do Estado na economia com finalidade social e o discurso do empreendedorismo,
atingem um alto grau de difusão a partir de dois aliados que também se alimentam
de uma base a-histórica: o
pós-modernismo e o ambiente caótico das redes sociais.
O fundamento pós-moderno, ao
problematizar a História e o conhecimento histórico, se constrói a partir da
lógica em que se discute a noção de verdade, razão, identidade e objetividade.
Com isso, o pós-modernismo questiona as teorias de amplo alcance a partir do
rótulo de “grandes narrativas” que “só uma violência teórica poderia forçar”. A
História seria descontínua e o mundo “contingente, gratuito, diverso, instável,
imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas gerando
certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das
normas”[1].
O avanço dessa desconfiança sobre a história e sobre explicações sistêmicas
favorece discursos fragmentários e, portanto, se todos os contextos são
imprecisos, a História não pode ser muito diferente de uma outra narrativa como
a Literatura. Sérgio Rouanet daria uma definição interessante: o pós-modernismo
tenta exorcizar o velho sem construir nada novo; é uma “consciência
pós-moderna” sem referente empírico.[2]
O ambiente caótico das redes, ao
mesmo tempo que ganha impulso graças a um certo avanço da tal “consciência
pós-moderna”, retroalimenta essa permanente busca por negar a história e
“exorcizar o velho sem construir nada novo” e ainda dissemina certos modos de
pensar que dificilmente resistiria em uma lógica que valoriza a estrutura e a
totalidade. É aí que a doutrina econômica neoliberal ganha importantes aliados
para se expandir como racionalidade, como “filosofia neoliberal”.
Um exemplo de como opera é o
tratamento dado ao “Índice de Liberdade Econômica – ILE” (ou Index of Economic Freedom). Esse índice
passou a ser usado por think tanks, alguns
articulistas, por youtubers e afins com um status
explicativo que o índice não tem: esse indicador mostraria que quanto
maior o grau de liberdade econômica, maior o sucesso do capitalismo. Mais do
que isso: em algumas abordagens, o índice passou a ter poder explicativo, isto
é, ele explicaria o grau de desenvolvimento, hierarquizando todos os países sob
conceitos arbitrários e abstratos. O problema é que não há qualquer evidência
neste sentido e sequer fazem a pergunta banal: os países com maior grau de
liberdade econômica se desenvolveram porque garantiram maior liberdade
econômica ou conferiram maior liberdade econômica porque se desenvolveram? Sem
essa pergunta, os entusiastas neoliberais, como sempre, ignoraram todo o
processo histórico, toda análise científica, recortaram a realidade e
explicaram da forma mais conveniente, afinal o contexto em que vivemos aceita
facilmente a desconfiança em relação às explicações científicas que demandam
análise estrutural e sistêmica. O contexto em que vivemos aceita que a História
possa ser apenas uma narrativa como as outras e, portanto, aceita que o
ceticismo em relação à objetividade da verdade se converta em primazia da
opinião face à infinidade de conjunturas correntes. O fato é que mesmo com o
livro “The End of Poverty”, de
Jeffrey Sachs, demonstrando que o índice não tem potencial explicativo por não
haver significância entre ele e o desenvolvimento, a circulação do argumento não
foi reduzida. Assim, o índice mágico continua sendo capaz de explicar o sucesso
de alguns países que, ironicamente,
se beneficiaram com séculos de Mercantilismo, com décadas de Estado de
Bem-Estar Social (Welfare State) ou
que, como os Estados Unidos, enfrentaram uma guerra civil cuja escravidão,
ainda que alguns digam o contrário, não era uma preocupação maior para os
industriais do Norte na Guerra de Secessão (1861-1865) do que a defesa do
protecionismo econômico, que era combatido pelos latifundiários do Sul.
Negar a história e a ciência não
é apenas uma consequência não desejada, é, antes de tudo, uma necessidade. Sem
a ditadura da opinião em detrimento do conhecimento, essa filosofia neoliberal
não pode sobreviver e circular. Vejamos um exemplo:
Em conversas com fontes do governo, as respostas são as seguintes: Embora
a receita seja obrigatória, acredita-se que muitas farmácias venderão sem a
receita, o que levaria a um uso abusivo e indiscriminado do medicamento;
médicos despreparados podem também exagerar na prescrição do medicamento, com
as mesmas consequências; os ricos, com medo da epidemia, comprarão tudo das
farmácias, esgotando os estoques. Faz sentido? Primeiro ponto: a análise
considera que os brasileiros não sabem cuidar de si e, com liberdade de
escolha, agirão de modo contrário aos seus verdadeiros interesses.[3]
Ora, o cerne da liberdade de
escolha para consumir um medicamento, em pleno contexto de pandemia, é o que o
sustenta a defesa da cloroquina, da ivermectina, do tratamento precoce e afins.
Em linhas gerais, o que se diz é que, na ausência de um medicamento eficaz
comprovado, se o médico prescrever, com sua liberdade no exercício da
profissão, e o paciente aceitar, no exercício de liberdade de escolha, qual é o
problema? A citação acima, no entanto, não se refere à cloroquina, mas ao
Tamiflu. Não foi Bolsonaro que o defendeu, mas o economista e jornalista Carlos
Alberto Sardenberg, em 2009, na epidemia de H1N1. Há quem possa argumentar que,
diferente da Cloroquina, o Tamiflu foi amplamente utilizado no combate à H1N1.
No entanto,
[...] a Cochrane Collaboration — uma rede de cientistas independentes que
analisam a eficácia dos medicamentos comercializados — divulgou que o
antigripal Tamiflu, utilizado no tratamento da gripe A H1N1, não evita a
disseminação da doença nem diminui as complicações que ela pode causar. Na
verdade, segundo o estudo, ele teria o mesmo efeito do paracetamol (analgésico
popular).[4]
Ou
seja, segundo os pesquisadores, o medicamento se mostrou eficaz apenas em casos
de hospitalizados graves e com doenças crônicas, sem capacidade de prevenção[5],
com uma série de relatos de eventos adversos graves, em especial eventos
neuropsiquiátricos associado ao medicamento[6].
Além disso, a maioria dos estudos que atestaram a segurança e a eficácia do
Tamiflu para a profilaxia e tratamento da gripe haviam sido feitos com
financiamento da farmacêutica Roche (que comercializou e promoveu o fármaco)[7].
Porém, o que estava em jogo para
Sardenberg não era a evidência científica nem a eficácia ou não do medicamento,
mas, sim, o pressuposto de que a liberdade de escolha é um princípio universal
e que não deve ser relativizado nem nesses casos mais sérios, que envolve
saúde. O Estado, naquele caso, deveria aceitar como dado inquestionável que as
pessoas não agiriam contra seus próprios interesses. E tem mais:
Mais ainda, por que os médicos do setor privado (incluindo os
dos planos e seguros-saúde) seriam mais despreparados que seus colegas do setor
público? Em resumo, há nessas objeções do pessoal do governo não apenas a ideia
de que as pessoas não sabem cuidar de si mesmas, como também a desconfiança de
que os médicos do lado privado, que atendem mais de 45 milhões de pessoas com
planos ou seguros de saúde, são despreparados ou movidos por outros interesses.
Mas imaginemos que aconteça tudo o que o pessoal do governo teme: que se vendam
milhões de frascos sem receita, que os médicos distribuam ou vendam milhões de
receita e que ocorra uma corrida às farmácias, com esgotamento dos estoques e
alta de preços no câmbio negro (pois os preços na farmácia estão tabelados). E
daí?
Ignorando
a especificidade de um contexto epidêmico e que demanda atualização constante
face às pesquisas que iam perseguindo a evolução da doença, Sardenberg tratou a
questão da “competência” como atributo moral e não técnico. Como se alertar
para o risco da falta de conhecimento acerca de uma doença nova, fosse
desqualificar o profissional. Nem todo médico se mantém pesquisador. O
protocolo visa justamente orientar aquele profissional – obviamente, importante
para a saúde – que vai para o consultório e não consegue manter o monitoramento
nas pesquisas sobre o desenvolvimento e a aplicação de fármacos em tempo real.
Apenas isso!
Por
fim, o temor que esses profissionais sejam “movidos por outros interesses” não
pode fazer sentido desde o ponto-de-vista em que ele fala: as pessoas possuem
liberdade de escolha, fazem escolhas racionais e não contrárias aos próprios
interesses e o mercado é a instância perfeita, que regula e corrige tudo o que
for imperfeito na sociedade. Eis, o mistério da fé. O dogma na infalibilidade do
mercado e da concorrência, nunca provado, mas sempre mobilizado.
Avancemos 12 anos, façamos a alteração de H1N1 por SARS-CoV-2 e de Tamiflu por Cloroquina, Hidroxicloroquina, Ivermectina e/ou tratamento precoce. Os argumentos são os mesmos. Mas, então, porque a lógica bolsonarista é tida como obscurantista e negacionista e a de Sardenberg não? O que muda são os fatos. Sardenberg não foi confrontado com os fatos. Na ocasião, o país conseguiu vacinar sua população rapidamente e, junto a outros fatores, a epidemia foi controlada. Logo, o texto de Sardenberg não passou de uma peça banal do malabarismo retórico que alimenta a reflexão com base na “filosofia neoliberal”. Bolsonaro e o bolsonarismo não tiveram a mesma sorte de deixar suas posições na trincheira do enfrentamento ideológico. Os fatos se impuseram, as trapalhadas do governo e a dificuldade de acesso à vacina produziram mais de 450 mil mortos, tornando improvável esquecer a defesa de medicamentos sem comprovação científica como parte da tragédia. Nem Sardenberg (como ele mesmo disse na CBN, felizmente vacinado) pode ignorar o trágico resultado, ainda que faça críticas formais e sem substância e que dissimule sua adesão à lógica que nos trouxe a esse caos.
* Jefferson Nascimento é doutorando em Ciência Política (UFSCar),
mestre em Ciências Sociais e professor no Instituto Federal de São Paulo
(IFSP). membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos
Latino-Americanos (NEPPLA) Autor do livro “Ellen Wood – o resgate da
classe e a luta pela democracia” (Editora Appris).
** Leonardo Sacramento é doutor em Educação, professor de ensino fundamental da Rede Municipal de Ribeirão Preto e pedagogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, campus Sertãozinho. Presidente da APROFERP (Associação dos Profissionais de Ensino de Ribeirão Preto/SP). Autor do livro A universidade mercantil: um estudo sobre a universidade pública e o capital privado (Editora Appris).
[1] EAGLETON, Terry. As
ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 50-52.
[2] ROUANET, Sérgio P. “A verdade e a ilusão do
pós-moderno”. Revista do Brasil, Rio
de Janeiro: Governo do Estado do Rio de Janeiro/Secretaria de Ciência e
Cultura; Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, ano 2, n. 5, 1986
[3] SARDENBERG, Carlos A. “Por uma caixa de Tamiflu”. Estadão, Caderno de Economia, São Paulo,
10 ago. 2009. Disponível em: <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,por-uma-caixa-de-tamiflu,416184>.
[4] Ver: <https://drauziovarella.uol.com.br/infectologia/tamiflu-so-e-indicado-para-casos-graves-de-h1n1/>.
[5] “Tamiflu
só é indicado para tratar H1N1 em casos graves, como os que envolvem doentes
crônicos, gestantes, idosos e crianças menores de dois anos.” Ver: <https://drauziovarella.uol.com.br/infectologia/tamiflu-so-e-indicado-para-casos-graves-de-h1n1/>.
[6] GUPTA, Yogendra K;
MEENU, Meennakshi & MOHAN, Prafull. “The Tamiflu fiasco and lessons
learnt”. Indian Journal of Pharmacology,
v.47 (1), jan-fev. 2015, p. 11-16. Ver:
<https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4375804/>.
Nenhum comentário:
Postar um comentário