sábado, 31 de julho de 2021

Brasil Nazi



Brasil Nazi

Paulo Sérgio Ribeiro

Iniciemos com uma breve enumeração dos fatos:

- O slogan de campanha escolhido por Jair Bolsonaro na corrida presidencial de 2018 foi "Brasil acima de Tudo, Deus acima de Todos", uma evidente apropriação do “Alemanha acima de todos” (Deutschland über alles), um dos bordões de Adolf Hitler que chegaria a compor o hino nacional alemão até ser dele suprimido nos estertores da Segunda Guerra Mundial;

- O hino das brigadas de paraquedistas do Exército Brasileiro de cujas fileiras é oriundo o atual vice-presidente da República, o general da reserva Hamilton Mourão, tem por inspiração a “Canção do Demônio” (SS marschiert in Feindesland), um hino que, digamos, elevava o moral das tropas nazistas da Waffen SS[1];

Eis uma exibição do hino cantado entusiasticamente por Mourão e seus pares na caserna:

Eis a melodia original:

- O então Secretário Especial de Cultura do Governo Bolsonaro, o dramaturgo Roberto Alvim, plagiou trechos de um discurso do ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, em pronunciamento oficial. A repercussão negativa na Corte Suprema, no Parlamento e nas redes sociais daquela emulação do nazismo culminou em sua exoneração da pasta em janeiro de 2020[2].

- Em julho deste ano, Jair Bolsonaro recebe em seu gabinete ninguém menos que Beatrix von Storch, membro do Alternativa para a Alemanha (Alternative für Deutschland, sigla AfD), partido da extrema direita de orientação neonazista na Alemanha, e neta de Ludwig Schwerin von Krosigk, Ministro das Finanças do Terceiro Reich[3].

Não me impus rigor na cronologia dos fatos, pois cada um deles já seria em si motivo suficiente para encararmos com coragem e lucidez a presença de símbolos e valores que, em território nacional, servem à apologia de um regime totalitário que escreveu a página mais sombria da história do século XX: o holocausto.

Por que falar disso? Será que não poderia ter abordado um assunto menos bad vibes para os nossos 13 leitores?  

Em 2004, ano em que nos distraíamos de tão “felizes” ou, melhor dizendo, éramos felizes por estarmos demasiado distraídos no início da Era Lula, Jair Bolsonaro, então deputado federal pelo extinto Partido da Frente Liberal (PFL), já era um ícone para grupos neonazistas[4]. Adriana Dias, antropóloga que pesquisa há quase duas décadas a atuação desses grupos no Brasil, encontrou de uma maneira um tanto aleatória (um verdadeiro achado) a seguinte comunicação no extenso material etnográfico de que dispõe:

 


A carta acima, publicada por pelo menos três dentre as dezenas de sites neonazistas em língua portuguesa já identificados por Dias, não nos permite inferir que Bolsonaro a tenha remetido ao Econac, mas nos leva a indagar, como o faz a pesquisadora, por que tal carta não foi encontrada em nenhum outro lugar para além do ambiente neonazi na Internet[5] e, não menos importante, por que o então deputado federal não denunciou tais grupos ou sequer impediu a veiculação de sua comunicação oficial pelos mesmos, já que a divulgação do nazismo é uma qualificadora do crime de racismo no país (Lei nº 7.716/1989, Art. 20, §§ 1º e 2º).

Considerando que o tumulto na sucessão eleitoral que se aproxima é um expediente do qual o (ainda) presidente da República é useiro e vezeiro e, pior, que uma parcela de sua base eleitoral tem na violência política um moto próprio para vingar-se de um capitalismo periférico contra o qual estão impedidos de vislumbrar alternativas de superação histórica pelo próprio caráter pré-político do seu comportamento – que a engenharia social do bolsonarismo induz e reforça – , é fortuito que reconheçamos não apenas o quão suscetível somos a um regime nazista – mesmo que brasileiros tenham sido recrutados para se integrar aos Aliados contra as forças do Eixo na Segunda Guerra Mundial –, mas como o extermínio em massa na Alemanha de Hitler e no Brasil de Bolsonaro é um desdobramento funesto da não elaboração do passado.

Em “Educação e Emancipação”[6], Theodor W. Adorno se volta a essa questão-chave para o nosso destino comum. Refutando o chavão pelo qual a questão se pôs na Alemanha do pós-guerra – equacioná-la como se possível fosse riscar da memória o Terceiro Reich – Adorno nos lembra que o “nazismo sobrevive” enquanto não soubermos se os seus horrores são invulneráveis à própria morte ou se a disposição violenta para retornar ao “indizível” permanece latente nos homens e nas condições que os cercam.

“Não inventei o racismo”, “Não sou genocida”, “Anulei o voto no 2º turno, pois não me vi representado por Haddad (um democrata inconteste) nem por Bolsonaro (um defensor convicto da ditadura)”, “Era uma escolha difícil” são modos inconscientes ou nem tanto assim de recusar a culpa pela Auschwitz tropical que se sucedeu com a chegada da extrema direita ao Executivo federal. Noutros termos, de não elaborar o passado, mas de ser dirigido por ele. Assim foi com a escravidão, assim o é com a ditadura civil-militar e, talvez, assim será com a pandemia do novo coronavírus. Quanto à última, valho-me uma vez mais do ensinamento do teórico frankfurtiano: o ato de esquecer e de perdoar é exclusivo de quem sofre a injustiça, mas bem pode ser imposto pelos partidários daqueles que a praticaram ou que a endossaram com indiferença passiva.

O desejo de libertar-se do passado justifica-se: não é possível viver à sua sombra e o terror não tem fim quando culpa e violência precisam ser pagas com culpa e violência; e não se justifica porque o passado de que se quer escapar ainda permanece muito vivo (ADORNO, 2006, p.29).

O leitor apressado pode deduzir da passagem acima uma exortação do pacifismo. Muito pelo contrário, ela apenas nos diz que os brasileiros mortos nesta pandemia deverão ser vingados para que possamos merecer o seu esquecimento.



[1] Jornal GGN. Canção do Dragão, hino militar dos paraquedistas brasileiros, uma tradução de um hino da SS. Edição de 29/09/2017. Disponível aqui.

[2] El País. Secretário da Cultura de Bolsonaro imita fala de nazista Goebbels e é demitido. Edição de 17/01/2020. Disponível aqui.

[3] Congresso em Foco. Bolsonaro posa para foto com neta de antigo ministro de Hitler. Edição de 26/07/2021. Disponível aqui.

[4] Carta Campinas. Pesquisadora descobre prova que mostra relação de Bolsonaro com nazistas. Edição de 28/07/2021. Disponível aqui.

[5] The Intercept Brasil. Pesquisadora encontra carta de Bolsonaro publicada em sites neonazistas publicada em sites neonazistas em 2004. Edição de 28/07/2021. Disponível aqui.

[6] Cf. ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006 (4ª edição).

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Centrão civil versus Centrão Fardado


Centrão civil versus Centrão Fardado*

* Publicado originalmente em A Terra é redonda. 

Luís Felipe Miguel 

As providências de Jair M. Bolsonaro para arrastar-se até o final do mandato mantendo impunidade para si mesmo e para os rebentos

Acuado pela crise sanitária, social e econômica, colocado na defensiva pela CPI, o governo Bolsonaro luta pela sobrevivência. O capitão sabe que a parcela de eleitores que lhe é integralmente fiel, aqueles 25 a 30% que permanecem invulneráveis ao impacto da realidade, é fundamental para qualquer projeto eleitoral da direita. Este é seu capital. Mas parece cada vez mais improvável conquistar os votos restantes, que propiciem a reeleição. O discurso da “escolha muito difícil” será, em 2022, ainda mais constrangedor do que já era em 2018. Sob risco de ser abandonado pelos aliados ou mesmo de ver seu mandato abreviado – crimes de responsabilidade para isto não faltam –, Bolsonaro investe em duas estratégias paralelas: ameaça tumultuar o processo eleitoral e rateia o governo entre os políticos do Centrão.

São movimentos de alto custo. As bravatas contra as eleições aumentam a pressão para que as famosas instituições finalmente ajam para impor limites a Bolsonaro. E o acordo com o Centrão, como bem lembrou o general Mourão em outra estudada declaração pública, aliena de vez aquele eleitor que acreditou que Bolsonaro representava a ruptura com a “velha política”. O preço a pagar pela sobrevivência é aumentar a conta para o futuro imediato.

Até porque o modus operandi do Centrão, sobretudo diante de governos fracos, é o do saque, sem nenhum compromisso de longo prazo – no que lembra, aliás, a política econômica de Paulo Guedes. Um exemplo eloquente: mesmo entregando a Casa Civil a Ciro Nogueira, talvez recriando o Ministério do Planejamento para devolver ao grupo o controle do orçamento da União, Bolsonaro pode não conseguir a filiação ao PP. A imprensa reporta resistência de muitos caciques do partido, seja porque não desejam ver o clã do presidente dominando os diretórios locais, seja porque querem estar livres para apoiar outro candidato em 2022, em alguns casos ninguém menos do que o ex-presidente Lula.

O quadro se complica ainda mais porque o governo Bolsonaro já está em grande medida ocupado por um grupo dedicado a parasitar o Estado – os milhares de oficiais da ativa e da reserva que ocupam cargos civis e intermedeiam negócios, dos quais Pazuello foi o símbolo mais vistoso e Braga Netto é o porta-voz mais ativo. Este “Centrão fardado”, por assim dizer, ampara as intentonas de Bolsonaro contra as eleições do ano que vem, por medo de, com uma mudança de governo, perder as prebendas de que hoje desfruta. Não está feliz, portanto, de ver o Centrão civil invadir, com seu típico apetite de gafanhoto, os múltiplos espaços que conquistou nos últimos anos.

Por isso, é razoável interpretar – como fizeram vários jornalistas – o vazamento da conversa entre Braga Netto e Arthur Lira, na qual o ministro da Defesa anuncia sua intenção de impedir a realização das eleições, como parte deste conflito intestino (sem nenhum trocadilho). O general foi obrigado a um desmentido, ainda que capenga, e é forte a pressão para que seja ao menos investigado. Uma convocação pelo Congresso, para prestar esclarecimentos, é bem provável; falta saber o quanto custará, para o governo, evitá-la. Esta é, aliás, uma das vantagens dos civis na disputa ora em curso: possuem um amplo arsenal de medidas que podem usar de acordo com a ocasião, calibrando seu impacto. Já os militares contam apenas com a ameaça, que usada em excesso tende a se expor como mera fanfarronada.

A posição do governo Bolsonaro é pouco confortável. O agravamento da crise sanitária e social, a incompetência gerencial e a inabilidade política fizeram com que ele desperdiçasse, em pouco tempo, a situação vantajosa em que parecia estar no começo do ano, quando conquistou vitórias folgadas nas eleições para as mesas do Congresso e chegara a certa pacificação, ainda que tensa, na relação com o Supremo. Sua fórmula de “governabilidade”, que no caso significa arrastar-se até o final do mandato mantendo impunidade para si mesmo e para os rebentos, exige tanto o Centrão civil quanto os fardados. Mas tudo indica que a convivência entre eles está ingressando em momento de forte turbulência.

terça-feira, 27 de julho de 2021

Nota de solidariedade ao Professor Conrado Hübner Mendes e de repúdio ao Procurador-Geral da República

Nós, membros do grupo de pesquisa “Direito, Sociedade Mundial e Constituição” (DISCO), da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, manifestamos nossa solidariedade ao professor Conrado Hübner Mendes, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Neste domingo, 16 de maio de 2021, tomamos conhecimento da representação à reitoria da USP feita pelo Procurador-Geral da República, Augusto Aras, contra o prof. Conrado Mendes. Membro do corpo docente da FD/UnB, Augusto Aras deturpa a via administrativa universitária ao promover ato flagrantemente intimidatório. O Procurador-Geral demonstra valer-se do modus operandi truculento, egocêntrico e autoritário característico do chefe do Executivo, comprometendo a independência funcional do órgão público que chefia.

O direito de crítica a fatos da vida pública e o pluralismo de ideias são de extrema importância para o regime democrático. Tentativas de intimidação, como a cometida por Augusto Aras, representam grave risco às bases constitucionais da nossa democracia. O Procurador decidiu se juntar àqueles que têm atacado de maneira infame a Constituição e o nosso regime democrático. Com essas ações desmedidas, ele atinge não só os direitos de Conrado Hübner Mendes, mas a liberdade acadêmica da comunidade científica brasileira, a liberdade de expressão e o direito à informação das leitoras e leitores.

Defendemos com veemência o exercício da atividade docente e a liberdade de expressão. Repudiamos a tentativa de intimidação do Procurador-Geral Augusto Aras. E expressamos nossa solidariedade com o professor Conrado Hübner Mendes.

Brasília, 16 de maio de 2021

Marcelo da Costa Pinto Neves

Professor de Direito Público da Faculdade de Direito Universidade de Brasília

Pablo Holmes Chaves

Professor do Instituto de Ciência Política (UnB) e na Pós-Graduação da Faculdade de

Direito da Universidade de Brasília-UnB.

Link para a nota em pdf: http://bit.ly/notadesolidariedadechmdiscounb

sábado, 17 de julho de 2021

XI Semana de Ciências Sociais da UFF-Campos - Chamada de Trabalhos

 A Comissão Organizadora da XI Semana de Ciências Sociais da UFF/Campos gostaria de convidá-l@s para participar das atividades do evento e enviar resumos aos GTs temáticos.

O tema do evento é "Ciências Sociais em tempos de exceção" e acontecerá de 9 a 13 de agosto de 2021
Atenção!! O prazo para o envio de resumos foi adiado!!
Nova data: 25/7
 - Link com as informações sobre a programação, inscrições, GTs e normas para submissão de resumos: https://www.even3.com.br/xisemanadecs/
 - A programação já está quase toda no site!
 - O evento será on-line e aberto à comunidade universitária de instituições de ensino da cidade, da região e do país.
Muito obrigado!
Atenciosamente,
Comissão Organizadora: Jacqueline Deolindo, Claudio Araujo, Geovana Tabachi, Raquel Brum, Mariele Troiano, Maria Claudia Pitrez, Frederico Carlos de Sá, Ricardo Bruno Ferreira, Emannuel Santana, Haline Medeiros.


quinta-feira, 15 de julho de 2021

Bolsonaro e o cristofascismo brasileiro: relação cristianismo e política

 


Bolsonaro e o cristofascismo brasileiro: relação cristianismo e política*

* Publicado originalmente na ASCOM/UENF.

Em 1970, a teóloga alemã Dorothee Sölle criou o termo “cristofascismo” para se referir às relações entre o partido nazi e as igrejas cristãs no desenvolvimento do Terceiro Reich. Em 2020, ao lançar o livro “Pandemia cristofascista” (Editora Recriar), o também teólogo Fábio Py, docente do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da UENF, resgatou o termo, trazendo-o para o contexto brasileiro. O cristofascismo brasileiro é, segundo Py, a aliança entre igrejas cristãs e bolsonaristas para a implantação de um governo autoritário, com características neofascistas e ultraliberais. 

São muitas as analogias com o cristofascismo alemão. Assim como Hitler, Bolsonaro utiliza jargões cristãos como parte preponderante de seus discursos, como o clássico “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Assim como o ditador nazista, o presidente brasileiro também participa de eventos promovidos pelas igrejas cristãs, relacionando-se com seus líderes. E, dentre suas estratégias para alçar o poder e manter sua imagem em alta, se vale de seguidas conversões ao cristianismo. 

Segundo Py, o cristofascismo bolsonarista “promove-se por meio de uma teologia política autoritária, pautada hoje no clima apocalíptico do coronavírus, baseada no ‘ódio à pluralidade democrática’. Esse ódio é salpicado por técnicas governamentais de promoção da discriminação, de ódio aos setores ‘heterodoxos’. Diante da expansão do coronavírus no Brasil, foi somada sua característica antidemocrática ao discurso economicista como justificativa para a explicita permissão da ‘política da morte’ eugênica cujos alvos são os pobres, os mais velhos, os diabéticos e os hipertensos”. 

“A artimanha construída pela cúpula o desenha numa cristologia profana, apontando-o como messias, servo sofredor, ungido e eleito da nação. Faz isso para reagrupar as forças a fim de manter, a duras chicotadas, a implementação de medidas ultraliberais que hoje entregam à morte os mais vulneráveis” afirma. 

Em sua análise Py salienta que, em resposta ao contexto mundial e brasileiro da pandemia de Covid-19, Bolsonaro acirrou ainda mais a associação de seu governo ao cristianismo, evocando uma espécie de “guerra dos deuses”, como define Michel Lowy. 

“Nessa guerra pelo Deus cristão, Bolsonaro alimenta a base de seu governo autoritário ao reforçar sua gestão do ideário maniqueísta. Ao assumir-se como presidente dos cristãos, simplifica os conflitos políticos, que passam a transubstanciar-se em embates entre bem versus mal. Em tal arranjo, a guerra dos deuses se traveste na luta entre aqueles que representam o mal, em uma alegoria caricatural dos ‘comunistas’, dos ‘humanistas’, ou dos ‘petistas’, e entre aqueles também alegoricamente expressos como ‘cidadãos de bem’”, diz. 

Nesta entrevista à ASCOM/UENF, Fábio Py fala sobre as causas históricas para a ascensão do cristofascismo no Brasil, chamando a atenção para o legado da ditadura militar — cujo ideário não foi apagado com a volta da democracia — bem como para a responsabilidade do “petismo” para a ascensão dos evangélicos no poder. Segundo o professor, mais difícil que vencer Bolsonaro nas próximas eleições, será desarmar o bolsonarismo. Veja a entrevista: 

ASCOM – Segundo a narrativa do Novo Testamento, Jesus era a personificação do amor ao próximo. O presidente Bolsonaro já deu mostras suficientes de seu caráter racista, homofóbico, misógino, agressivo, arrogante e completamente insensível às mortes pelo coronovarírus. Como podemos entender este fenômeno no qual um candidato tão distanciado desse ideal cristão possa, ao mesmo tempo, para algumas parcelas da população, ter sua imagem aproximada à de Jesus Cristo?  

FÁBIO – Existe um ideário medieval de que Jesus é o amor encarnado, dono de uma prática pacifista. Esta é uma tradição do catolicismo hegemônica, contudo, alguns textos do evangelho destoam disso. Eu não sei dizer que ser pacífico, no mundo antigo, era você sair da sua casa e largar sua família como as narrativas indicam nos evangelhos. E tampouco falar que não veio trazer paz, mas espada, como Jesus indica aos apóstolos. Então esse é o primeiro elemento que tem que ser problematizado: essa imagem de um Jesus pacífico, que dá a outra face etc. Existem vários grupos partidários do judaísmo, da época de Jesus, nos quais, vez ou outra ele se enquadra. Eu não acho que Jesus foi alguém tão pacifico em relação às instituições religiosas e instituições do estado romano na Palestina. Na verdade, ele foi contra as duas instituições de domínio sobre os judeus na época. Na superfície, o cristianismo não tem muito a ver com Bolsonaro. Mas temos que considerar que o cristianismo é um elemento importante da civilização ocidental. E ele é absolutamente violento no seu lado interno, dos mecanismos religiosos, como Xavier Pikaza indica, pois renomeia as outras religiões, chamando alguns deles de satânicos, demoníacos. Então essa própria agenda monoteísta interna do sistema teológico do cristianismo é um problema, pois acumula praticas violentas das demais tradições religiosas.  

Estrategicamente, desde 2016, Bolsonaro vem tentando cada vez mais se afirmar como um bom católico e evangélico. E aí vemos uma série de conversões públicas dele, nas quais ele afirma: agora eu aceitei Jesus. Estrategicamente, ele afirma isso nos eventos cristãos, para poder sensibilizar de uma forma muito direta o público. Então, a via do diálogo dele com o cristianismo não é de acordo com o seu caráter reflexivo enquanto sujeito, que luta contra a homofobia, contra a discriminação, mas a via dele de diálogo com o setor é a de tentativas ou indicações de conversões. Foram diversas conversões ao catolicismo e, principalmente, mais recentemente, ao público evangélico. Nos últimos tempos, ele tem ido a várias celebrações religiosas na Assembleia de Deus, na Igreja Universal, na Igreja Mundial do Poder de Deus. Ele vem frequentando essas igrejas de forma muito direta e, com isso, tentando amplificar o seu diálogo com a base. Portanto, Bolsonaro vem tentando se afirmar como um convertido, e ao mesmo tempo, frequentar uma série de celebrações com o setor evangélico. Essa é a forma com que ele vem tentando dialogar, passando inclusive por cima dessa tônica dele misógina, a favor de armas etc. Aliás, isso é interessante, pois o setor evangélico no Brasil é contrário ao uso de armas e, mesmo assim, ele vem conseguindo suplantar essa dificuldade.  

ASCOM –  O envolvimento de evangélicos na política, apoiando candidatos e mesmo adentrando a arena política, vem se dando já há algum tempo no Brasil. Em que difere o momento atual do que ocorreu nos últimos governos de esquerda?  

FÁBIO PY – A questão dos evangélicos na política já vem acontecendo há algum tempo, antes mesmo da construção da bancada evangélica. Na verdade, isso vem desde 1930, quando o governo varguista incentivou a criação de algumas representações, organizações religiosas. Por exemplo, nós temos a Liga Católica, formada em 1932, e a Confederação Evangélica Brasileira, formada em 1934. Essas agências vão lutar também pela representação eleitoral desses setores. A Confederação Evangélica consegue eleger, em 1936, o pastor metodista Guaraci Siqueira, que depois vai ser eleito deputado federal. O interessante é que ele tinha uma posição política de esquerda, era um ‘socialista cristão’. Também se mobiliza o catolicismo. Na ditadura militar, há um apoio indireto das igrejas evangélicas, como a Assembleia de Deus, a Batista, a Presbiteriana. Elas apoiam em silêncio a ditadura militar. Em 1986, acontece um novo tipo de entrada do setor evangélico no meio político, por conta de alguns grupos discipulados por evangelistas americanos que vão começar a incentivar a participação política das igrejas. Então, a configuração evangélica brasileira se redimensiona a partir de 1986, buscando uma representação oficial de evangélicos no meio da política partidária. Já neste ano, eles conseguem a eleição de alguns quadros, que vão começar a formar o esboço do início da bancada evangélica. Isso vai ganhando cada vez mais proporção e, a partir da década de 2010, eles conseguem criar a Frente Parlamentar Evangélica. 

 O que acontece é que no governo PT o grupo evangélico participou da governança petista. Vale à pena lembrar que a área de direitos humanos ficou durante um tempo nas mãos dos setores evangélicos chamados progressistas. Logo depois Marcos Feliciano assume esse setor, e se distancia do governo PT com intrigas públicas, como com Arolde de Oliveira. Mas se amplificou, culminando no impedimento de Dilma Rousseff, que foi amplamente convocado pela Frente Parlamentar Evangélica.   

Assim, o impeachment de Dilma Rousseff foi levado na ponta do lápis por Marcos Feliciano, Silas Malafaia e diferentes setores evangélicos hegemônicos. Nesse contexto, surge a vontade de construção de um governo cristão. Aí que entra o Jair Bolsonaro, que se batiza no âmbito do próprio impedimento de Dilma Rousseff, percebendo o vácuo e a necessidade da Frente Parlamentar Evangélica de ter um cristão como futuro presidente. Nos últimos anos, o que se diferencia é isso: o governo do PT ajudou a Frente Parlamentar Evangélica a ganhar força. Mas essa aliança se desfez e eles ajudaram no impedimento de Dilma. Em seguida, passaram a compor o quadro do governo Temer e,  posteriormente, ajudaram na construção do que chamamos hoje de bolsonarismo.  

ASCOM – O PT então pode ser culpado do surgimento do bolsonarismo por ter contribuído para a ascensão dos evangélicos ao poder? 

FÁBIO PY – Eu diria que sim. Vários grupos atuaram na construção do bolsonarismo, como o PT, o PSOL. As esquerdas tradicionais, mesmo de forma indireta, ajudaram nisso. Ajudaram no processo de construção de um “espantalho da esquerda”, um sujeito odioso, que fala tudo que não é correto, justo e que tem posições contrárias à democracia. Certamente, um dos responsáveis por isso é o setor de esquerda. Ao longo desse processo, ocorreram algumas questões. Quero salientar que, antes da eleição de Lula, quando se começava a pensar e mobilizar a campanha eleitoral que daria a vitória a ele, em 2001, um grupo evangélico progressista participou de uma reunião e assumiu que vale a pena abrir o diálogo com instituições religiosas grandes, como eu costumo chamar, com as grandes corporações religiosas evangélicas. A Universal e todas essas igrejas foram chamadas para o diálogo e, a partir daí, o PT passou a se relacionar com essas instituições representadas na Bancada Evangélica. Então, há um grupo, um núcleo dentro do petismo que defende o diálogo com grandes evangelistas, pastores como Silas Malafaia, Edir Macedo, etc. Esses evangélicos progressistas que são os responsáveis por esse diálogo. Isso foi até um passo importante, mas depois, ao longo do tempo, foi causando uma série de rusgas e problemas. Novamente, vale à pena lembrar que Marcos Feliciano assumiu, como liderança da Frente Parlamentar Evangélica, a comissão de direitos humanos, causando uma série de tensões, falando contra o setor LGBTQIA+, a favor da ‘família tradicional brasileira’, e isso ajudou a dar mais força ainda para a Frente Parlamentar Evangélica. Ao mesmo tempo, foi a partir do crescimento dessa Frente que aconteceu a união bolsonarista. Então não há uma ligação direta entre o lulismo e bolsonarismo, mas pode-se dizer que certas instituições, grupos, tendências do setor evangélico já participavam do governo petista e depois ajudaram a organizar e construíram muito fortemente o governo que agora a gente se está vendo, que é o bolsonarismo, e que eu chamo de cristofascismo brasileiro. 

ASCOM – Qual foi o motivo do rompimento dos evangélicos com o PT? 

Fábio Py – Eu diria que o motivo do rompimento dos evangélicos  com o governo Dilma foi essa questão de  que começou a ficar muito estridente  que o governo não era tão favorável à dita “familia tradicional brasileira”. Começou-se a falar muito em ideologia de gênero, por exemplo, e essas terminologias começaram a cada vez mais afastar o governo de Dilma Rousseff das pautas tão importantes para o setor conservador evangélico. Mas eu queria também adentrar um detalhe: a Igreja Universal do Reino de Deus, mesmo sendo favorável à ‘familia tradicional brasileira’, foi uma das últimas instituições a romper com Dilma. Isso também tem que ser colocado na ponta do lápis: a Igreja Universal do Reino de Deus, historicamente, desde Collor, é uma instituição religiosa extremamente pragmática, preocupada com o poder. Ela está sempre junto de quem ocupa o poder. Nesse momento, por exemplo, já estão acontecendo várias negociações dos agentes da Universal com os principais candidatos que começam a disputar a Presidência, no caso Lula e Bolsonaro. 

ASCOM –  Como podemos compreender historicamente o surgimento do “Cristofascismo” no Brasil e no mundo? Quais seriam as causas desse fenômeno de domínio das massas através da religião? Especificamente no Brasil, o que contribui para isso?  

FÁBIO PY – O cristofacismo é um termo que eu utilizo a partir de uma teóloga luterana chamada Dorothee Sölle. Ela usa o termo pela primeira vez para fazer referência à vivência dela no nazismo. Doutora em Teologia, foi professora em um seminário de Nova York, onde  teve acesso a grupos supremacistas brancos, percebendo o vínculo desses grupos com o fundamentalismo e a luta deles contra os direitos humanos, as mulheres, os negros etc. Dorothee afirma que há uma conexão entre o nazismo e esses setores. E é essa conexão que ela vai chamar de cristofascismo. Esses sujeitos supremacistas brancos americanos, em nome de Cristo, discriminam e constroem um maquinário de ódio contra os setores heterodoxos: mulheres, negros, LGBTQIA+ e, no caso dos  EUA, os latinos.  Então o cristofascismo surge assim. E aí eu faço uma diferenciação com a terminologia da Dorothee. Eu reconheço a importância do fundamentalismo para a construção do governo Bolsonaro, principalmente das grandes corporações evangélicas e católicas conservadoras. O cristofascismo brasileiro, a que eu estou me referindo, é a conexão destas grandes corporações evangélicas e católicas com o governo cerceador de Bolsonaro.  Elas ajudaram a construção dele, e agora dão as mãos e ajudam a composição, a manutenção dele no poder, construindo uma indústria muito pesada de signos cristãos de ódio a diferentes pessoas, como os professores, os setores LGBTQIA+, negros indígenas e quilombolas. Então, cristofascismo é uma larga composição hoje entre as grandes corporações religiosas cristãs e o bolsonarismo. Eles fazem isso a partir de uma linguagem comum: a linguagem do movimento dito fundamentalista. Bolsonaro chega a utilizar desde jargões e até textos bíblicos nas suas falas políticas. 

ASCOM -Temos visto a perda da popularidade do presidente Bolsonaro à medida em que aumentam as mortes pela pandemia e que a CPI da Covid-19 avança em suas investigações. Podemos vislumbrar o fim do cristofascismo a partir da queda de Bolsonaro ou este movimento tende a continuar com outros atores políticos?  

FÁBIO PY – Estamos vendo cada vez mais fritar o governo Bolsonaro, mas o que acontece é que, embora o presidente esteja perdendo apoio popular, o bolsonarismo vai ser um movimento difícil de ser desarticulado. Como ocorreu nos EUA, onde, mesmo com a derrota de Trump, o trumpismo ainda é um elemento forte. Quer dizer, existem parcelas dessa comunidade, da comunidade americana e da comunidade brasileira que atuam junto a práticas preconceituosas, racistas, e tudo o mais. Então, acho que temos pela frente um amplo desafio, ainda maior que sua derrota nas eleições, que é desarmar o bolsonarismo, que está absolutamente ligado em suas raízes as antigas elites da ditadura civil-empresarial-militar brasileira.  

Nós não desarmamos esta construção hegemônica do militarismo na sociedade brasileira, não prendemos os militares que se utilizaram do governo para poder cassar, matar, praticar crimes contra a humanidade no Brasil. Bolsonaro foi criado na ditadura militar. Ele era militar à época, foi criado por ela e agora segue dissipando, a partir do cristianismo, o seu ódio em direção a diferentes setores sociais e a classes sociais distintas da dele. Então, o maior desafio é desarmar o bolsonarismo, uma vez que nós não conseguimos desarmar o legado da ditadura militar na sociedade brasileira e isso, evidentemente, ajudou a construir o que nós chamamos hoje de  bolsonarismo. 

ASCOM – Caso o presidente seja considerado culpado, sofra um impeachment e eventualmente seja condenado na esfera criminal, que consequências isto poderá trazer para as instituições religiosas que ajudaram a elegê-lo e ainda mantêm o seu apoio? 

FÁBIO PY – Se o bolsonarismo não está desarmado, o cristofascismo não será desarmado tão facilmente. As agências religiosas seguem junto ao bolsonarismo. E seguem dando tons religiosos, ensinando, agindo como ‘intelectuais orgânicos’ (Gramsci) no governo e posteriormente também devem seguir. Então a gente tem um duplo desafio: primeiro vencer Bolsonaro nas eleições, de forma pragmática. Segundo, é tentar, ao longo do tempo, com um trabalho denso de formação crítica, educativa, de formação social, tentar desarmar tanto a ditadura militar quanto o bolsonarismo. 

Caso haja impedimento e criminalização, espera-se que as grandes corporações religiosas evangélicas e católicas sofram medidas judiciais. O que eles vêm fazendo merece ser criminalizado, porque fecham os olhos para as mortes das pessoas e para a ciência, em detrimento do ganho financeiro, do ganho político. Essas instituições religiosas que abarcam esses pastores que mobilizam o bolsonarismo merecem pelo menos servir de exemplo sendo criminalizadas, pois estão cometendo crime contra a humanidade. Meio milhão de pessoas não morrem à toa, morrem porque não há uma política ampla do governo e também não houve uma conscientização religiosa e política junto à população, isso tem que ser deixado bem claro. 

ASCOM – Estamos então vivendo o resultado de um duplo descaso: 1- a não punição dos militares envolvidos em crimes durante a ditadura e 2- a “vista grossa” para a proliferação de igrejas cujo único popósito é arrecadar dinheiro e aumentar seu poder? 

FÁBIO PY – Na verdade, figuras como Bolsonaro só estão no poder porque os militares não foram criminalizados. Não todos, mas os militares que estavam no poder. Um dos responsáveis pelo que está acontecendo é, sim, essa linha de pensamento militar brasileira. E também não posso deixar de mencionar as instâncias religiosas que ajudaram de forma direta a eleger o Bolsonaro. Não posso deixar de destacar o descaso das instâncias religiosas cristãs às 500 mil mortes de Covid-19, inclusive protestantes tradicionais, que tanto são considerados como intelectualizados e tudo mais. Eles também desprezam a ciência hegemônica que constrói tratamentos e vacinas contra a Covid e fizeram uma aposta em vários momentos por remédios ineficazes como a cloroquina. 

 
ASCOM – Como as milícias se encaixam no cristofascismo brasileiro? 

FÁBIO PY – Já se vem falando que a milícia é o estado. Posso dizer de uma forma direta que Bolsonaro tem seu público fiel junto às milícias do estado do Rio de Janeiro. É só olhar a própria moradia dele e quem são as figuras que habitam aquela região, ou os próprios suspeitos do assassinato de Marielle, vereadora do Rio de Janeiro.  

Há muita discussão sobre a vinculação de Bolsonaro com as milícias do RJ, mas, de forma mais conclusiva, a gente pode dizer que é um quadro do militarismo que ajudou a nutrir as milícias, mas que está ligado com todas essas práticas que já são clássicas desde a ditadura militar brasileira, de rachadinha, esse tipo de coisa, que vem sendo levantado agora, na própria CPI. Bolsonaro e seus filhos estão absolutamente vinculados a essas práticas como vêm demonstrando as investigações.  

Se a milícia se apodera cada vez mais dos espaços públicos, das geografias e das agências do estado brasileiro, cada vez mais se tem uma pragmática dentro do cristofascismo.  Porque se há uma conexão entre igrejas evangélicas e católicas com a linguagem do estado cerceador brasileiro atual, as milícias são quem opera a prática disso, a prática de violência contra diferentes setores. De forma não oficial, mas às vezes oficial. 

ASCOM – Você vê algum risco concreto para a democracia brasileira neste momento ou se o bolsonarismo não for desarmado? Podemos voltar a uma ditadura? 

Fábio Py – Primeiro temos que pensar que a ditadura militar não foi descrita como ditadura nos seus cinco, seis primeiros anos. Foi a partir de 1970 que começou a se configurar uma ditadura civil-empresarial-militar. No momento, é muito difícil se fazer uma análise mais detalhada sobre isso. Agora, alguns elementos têm que ser considerados. Para o professor Michael Lowy, não é possível mais falar de fascismo tal como era na década de 1940, 1950. Pra ele, o que se tem a partir de 1960 são novas versões, quando não se faz mais um governo totalitário, dissolvendo parlamento, construindo de forma direta práticas violentas, de estado ou, no caso do Hitler, imperial mesmo, do império do terceiro Reich. Para esse autor, virou uma pragmática dos governos nacionais certos traços fascistas. Eu acho que é isso um pouco que a gente passa com o bolsonarismo. Não tem aquela antiga configuração. Então não temos mais as condições de antes de 1960, novas versões. São governos pretensamente democráticos, mas com práticas de ódio internas intrínsecas a esses estados.  Bolsonarismo, para Michel Lowy, é um caso desse tipo, trata-se de um neofascismo, por isso que utilizo o termo cristofascismo. Pois nunca um governo (autoritário) traçou tanta conexão com o cristianismo hegemônico no Brasil. Essa é uma equação sinuosa. Agora, deve-se considerar outro dado: na atual gestão se tem aproximadamente 7 mil militares trabalhando no governo. O que eu quero dizer com isso é que, mesmo acontecendo a vitória de outro projeto que não seja Bolsonaro em 2022, vai ser muito difícil desarmar esse governo cristão militar. Desde o processo interno da eleição ao pós-eleição, tal como aconteceu  com Trump. O Bolsonaro já vem avisando, como o Trump fez também, que não vai aceitar facilmente uma pretensa derrota nas urnas. Tudo isso tem que ser colocado na ponta do lápis.  Não é apenas derrotar nas eleições, tem que tentar depois desarticular essa mobilização antiga pró-militar, que existe desde 1964 no Brasil, destruir esse imaginário que existe do militar como sendo uma possibilidade de construção governamental no Brasil, com a possibilidade de golpes militares. Então eu diria que temos muito trabalho pela frente. Primeiro, tentar de alguma forma derrotar o projeto Bolsonaro em 2022.  Eu preferia que fosse impeachment, mas… nem mesmo a cúpula do PT deseja o impeachment, preferem uma disputa eleitoral pois é mais rápida e menos desgastante. E também pelo risco de ocorrer uma outra virada de mesa caso o impeachment aconteça e o vice Mourão venha a ganhar novas cores. Então tudo isso tem de ser pensado diretamente. Após a saída de Bolsonaro, seja por impeachment ou eleição, é preciso depois seguir no processo de construção de diálogos e de educação, de repensar essa brasilidade. Repensar e negar, lutar contra, de forma direta, a composição que indica que os militares possam de alguma forma serem os salvadores da pátria no Brasil. Existe uma ala dentro do militarismo, um grupo, que admite condições políticas para isso. Desde o tenentismo da década de 1922, acham que têm que lutar politicamente pela construção de um Brasil, embora o tenentismo tivesse outra ideia, mas isso é um pensamento muito comum, no século 20, entre os militares brasileiros. Eu não acho que há um risco de uma nova ditadura civil militar, acho que existe risco é de o governo Bolsonaro seguir e aprofundar seu delírio que diz ser democrático. Isso é um risco muito claro: ele continuar e seguir a tônica do desprezo pela vida das pessoas. 

Indicação de Leituras: 

LOWY, M. O neofascista Bolsonaro diante da pandemia. Blog da Boitempo, 2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/04/28/michael-lowy-o-neofascista-bolsonaro-diante-da-pandemia/ 

PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020a. 

PY, Fábio. Bolsonaro’s Brazilian Christofascism during the Easter period plagued by Covid-19. International Journal of Latin American Religions, v. 4, p.318-334, 2020b. 

SCHMITT, C. Théologie politique. Paris: Gallimard, 1988. 

SOLLE, Dorothee. Beyond Mere Obedience: Reflections on a Christian Ethic for the Future, Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1970. 

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Sociedade civil avalia os 6 meses de governo Wladimir

Fonte: Folha 1.
                                                                                                                                                                                                               

Sociedade civil avalia os 6 meses de governo Wladimir*

                                                                                 * Publicado originalmente em Folha 1.

Nota 7,4 aos seis primeiros meses do governo Wladimir Garotinho (PSD). Esta foi a média entre as notas dadas à administração municipal no período, em ordem alfabética, pelo advogado Carlos Alexandre de Azevedo Campos, professor da Uerj e do Isecensa, e ex-assessor do Supremo Tribunal Federal (STF); o cientista político e sociólogo George Gomes Coutinho, professor da UFF-Campos; o especialista em finanças Igor Franco, professor do Uniflu; o empresário José Francisco Rodrigues, presidente da CDL-Campos; a pediatra Maria das Graças Ferreira Rangel, presidente do Sindicato dos Médicos de Campos (Simec); e Raul Palacio, professor e reitor da Uenf.

Na verdade, a avaliação foi feita por cinco dos seis representantes da sociedade civil goitacá. A presidente do Simec declinou de dar nota ao governo, ainda que não tenha se furtado em fazer críticas, como ao projeto de terceirizar a administração das unidades e profissionais da Saúde Pública de Campos. Que foi, no entanto, defendido por outros. Os seis questionaram a falta de diálogo prévio com a sociedade, tanto na proposta do novo Código Tributário, quanto na polêmica do anfiteatro Antonio Roberto de Góis Cavalcanti, o Kapi, com a Praça da Bíblia, no Parque Alberto Sampaio. Como principal virtude da gestão, além de realizações como a reabertura do Restaurante Popular e a recuperação de estradas vicinais, foi apontada a capacidade de trabalho do prefeito, do seu vice, Frederico Paes (MDB), e sua equipe.

Folha da Manhã – De 0 a 10, que nota você dá aos seis primeiros meses do governo Wladimir Garotinho? E por quê?

Carlos Alexandre de Azevedo Campos – Havia dado, anteriormente, 8. Pela má condução do processo de mudança do Código Tributário, rebaixo a nota a 7.

George Gomes Coutinho – Penso que a nota razoável seja a suficiente para não reprovar e tampouco para aprovar com louvor. Penso que por enquanto a nota 7 nestes primeiros seis meses se aplique e sirva de incentivo para aprimoramentos. Mas, sabendo que aquele período onde há a “energia” das urnas, o primeiro ano está caminhando para término neste segundo semestre. Penso ser recomendável “aumentar a intensidade” das mudanças propostas ainda em 2021, não obstante considerar os problemas da conjuntura, o que inclui a pandemia.

Igor Franco – Nota 7. Após um início muito positivo, a meu ver, o governo perdeu um pouco o ímpeto e foi açodado em algumas iniciativas, como a reforma tributária, necessária, mas que precisa ser melhor debatida pela população. Além disso, deslizes como a aglomeração na inauguração do Restaurante Popular, o episódio do anfiteatro Kapi são deslizes desnecessários e evitáveis através do bom senso. Apesar de tudo, continuo satisfeito com os rumos da administração até o momento.

José Francisco Rodrigues – Quando o prefeito completou 100 dias de governo, eu havia dado nota 9. Os seis meses em que pesem algumas questões pontuais, como a disposição dele em reajustar tributos, poderíamos até me fazer rever esse conceito. Mas vamos manter a mesma nota e explico: quando houve a reação das entidades, o prefeito Wladimir retirou a matéria da pauta da Câmara e abriu um diálogo com as entidades. Por isso vou manter a nota, como forma de incentivo para que ele acerte e está acertando em muitas coisas.

Maria das Graças Ferreira Rangel – Opto por não pontuar por meio de nota, ao menos por ora, os seis primeiros meses do atual governo. Nós, do Simec, torcemos e esperamos que a atual gestão municipal cumpra com o seu programa governo, anunciado durante o último pleito eleitoral, em sua totalidade, e alcance resultados positivamente efetivos em prol de toda a sociedade campista, nos próximos meses e anos, beneficiando assim o desenvolvimento do município.

Raul Palacio –  A dedicação do prefeito, a participação ativa do vice-prefeito, a articulação política, a qualidade de vários secretários, o desempenho no combate à Covid e no pagamento dos servidores, o pacto com alguns setores e a abertura do Restaurante Popular são pontos positivos. Entre os negativos, a falta de diálogo com setores populares, a personificação de processos políticos, a não realização de licitações, a falta de processos eletrônicos, a relação com a Câmara e a política de aumento de impostos na pandemia. Minha avaliação é 7.

Folha – O prefeito assumiu decretando logo nos primeiros dias de janeiro o estado de calamidade financeira, aprovado por unanimidade na Câmara Municipal. E, no último dia 3, no Trianon, no balanço dos seis meses de governo, fez a projeção de superávit financeiro à Prefeitura de Campos, antes de fechar o primeiro ano. Como você viu e projeta? E por quê?

Carlos Alexandre – São números de um governo que afirmou cortar gastos. Devem provar. Esse exame comparativo nem sempre revela sobra de caixa. Recebeu uma contabilidade negativa e diz que a tornará positiva. Se são verdadeiros os números, o futuro dirá. Mas se existem sobras, que invistam no que parece urgente: infraestrutura de trânsito e saúde.

George – Sem o detalhamento fiscal/orçamentário, não é possível fazer projeções. Mas, partindo da premissa de que as informações fornecidas pela própria PMCG sejam fidedignas, o que é viável se lembrarmos da experiência passada da gestão Diniz e a penúria declarada no período, além do aumento da participação dos royalties na gestão Wladimir, o diagnóstico indica melhora na saúde orçamentária. O que é excelente notícia diante dos desafios da cidade. Cabe é olharmos com lupa a sustentabilidade deste orçamento superavitário.

Igor – A princípio, a trajetória do dólar aliado à alta do petróleo traz previsões de receitas crescentes até o fim do ano para o município. Porém, é preciso ser cauteloso ao divulgar um possível resultado positivo nas contas públicas. O maior risco é trazer pressões por maiores gastos públicos a partir da percepção da população de que a situação é confortável.

José Francisco – O estado de calamidade financeira se explica por fatores diversos, principalmente a pandemia, e o governo anterior deixou pendências. É uma ferramenta que o gestor público utiliza para renegociar contratos. Não vejo paradoxo em prever um superávit até o final do ano, embora seja uma meta difícil, mas existe alguns indicadores, como a alta do barril do petróleo no mercado internacional, que se reflete nos royalties. Existe essa possibilidade. Temos que torcer para que aconteça, mas não com aumento de impostos.

Maria das Graças – O destaque concedido recentemente pelo prefeito à possibilidade de Campos ter superávit  financeiro até o fim deste ano, que foi anunciado poucos dias após o estado de calamidade pública fiscal e financeira ser prorrogado até dezembro, em razão do risco de colapso na saúde, educação, mobilidade e administração, nos causou profundo estranhamento. Se há previsão de resultado financeiro positivo, qual é a real necessidade de adotar medidas austeras contra servidores públicos municipais e aprovar o novo Código Tributário?

Raul – Ao assumir em janeiro, a situação era financeiramente bem mais complexa que a de hoje. É notável o aumento no barril do petróleo e a entrada de “dinheiro novo” dos parlamentares federais. Creio que o Governo de Estado também vai destinar recursos ao município, em função da articulação política do prefeito. Mas entendo como prematuro falar de projeção de superávit. Poderia dificultar a fundamentação da correta política de austeridade e controle da folha que a Prefeitura está realizando. Certamente vai na contramão do pedido de aumento de impostos.

Folha – Entre julho e setembro de 2020, a Folha fez uma série de 11 painéis para buscar alternativas à crise financeira de Campos. Foram ouvidas 34 pessoas, entre especialistas de várias áreas, da iniciativa privada e sindicatos. Apesar das diferenças, houve unanimidade em três pontos: parceria com as universidades, retomada da vocação agropecuária e pregão eletrônico integral. Como vê o trabalho do governo em cada um deles?

Carlos Alexandre – Não me recordo de parceria com universidades, ou opção massiva pelo pregão eletrônico. No último caso, se ocorreu, foi pontual, longe do ideal. Com relação ao setor agropecuário, acho que a representatividade está assegurada pelo vice-prefeito, o que pode trazer benefícios para a região. Temos uma vocação rural, que deve ser explorada. Porém, parcerias com universidades públicas e privadas devem ser perseguidas: esse é o grande futuro social e profissional de nossa região.

George – Notei com Wladimir uma mudança importante de postura em relação aos pais: ele se engajou na luta por recursos para os novos prédios da UFF e demonstrou abertura interessada em diálogo com a academia. Convidou nomes importantes do setor, como Almy que já foi reitor da Uenf, para o estafe. Há potencial para parcerias que gerem tecnologia social a partir do conhecimento acumulado pelas instituições locais. Sobre o setor agropecuário, há ações em andamento em logística, escoamento da produção. Por fim, o pregão é ainda algo tímido.

Igor – Embora haja iniciativas isoladas a respeito dos três temas, cujos registros estão disponíveis no site da PMCG, parece-me não haver programas que unifiquem e tragam parâmetros para essas iniciativas. Seria muito positivo se, consolidadas em algum tipo de documento público ou apadrinhadas por gestores específicos, tivéssemos premissas, metas e verificação dos resultados obtidos em cada uma dessas iniciativas.

José Francisco – Temos o exemplo de Campinas, no interior de São Paulo, que virou uma potência a partir da Unicamp. Temos aqui a Uenf, UFF, IFF e outras, e temos que aproveitar isso. Quanto à questão do agronegócio, é ponto pacificado: é uma das potencialidades de Campos que havia sido abandonada. Lembrar aqui que no ano passado as duas únicas usinas em atividade movimentaram R$ meio bilhão e uma terceira usina está sendo reaberta. Sobre o pregão eletrônico isso é a transparência que queremos e o poder público é obrigado a fazer.

Maria das Graças – Campos é um polo universitário e isso precisa ser cada vez mais valorizado. Diversas parcerias podem ser firmadas, a exemplo do que ocorreu no início desde ano, quando o IFF doou diversos equipamentos de proteção individual, o face shield (proteção para o rosto). É preciso fomentar a geração de renda através da valorização e estímulo do pequeno produtor e do desenvolvimento da agricultura familiar. Quanto ao pregão eletrônico integral, este deve ser realizado com lisura e transparência em todo o seu processo.

Raul – O controle da folha e o pacto com alguns setores estão sendo realizados. O trabalho está no início, entretanto, na direção certa. No caso da Uenf, estamos em contato com várias secretarias municipais e temos como principais interlocutores o vice-prefeito e o secretário municipal de Educação, Ciência e Tecnologia. A informatização dos processos da Prefeitura e o pregão eletrônico geral são pontos deficitários nestes primeiros seis meses. Acredito que as pessoas ouvidas também concordaram em relação à impossibilidade de aumento de impostos.

Folha – Em 15 de maio, o ex-governador Garotinho (sem partido) comandou uma reunião na Lapa sobre a votação das contas da ex-prefeita Rosinha (Pros) em 2016, cuja reprovação em 2018 foi anulada em 2021. Estavam 14 vereadores da base, entre eles o presidente Fábio Ribeiro (PSD), e Wladimir. Seu pai disse: “o governo tem dentes e pode morder”. Soou ameaça e começou a gerar distensões. Como você vê? Qual o limite dos pais no governo do filho?

Carlos Alexandre – Bola muito fora. Um olhar para o passado para quem tem que construir um futuro. Se o Executivo tem dentes e morde, a Câmara tem remédios e o governo já teve prova disso. Ademais, o povo campista já mostrou que sabe rejeitar o grupo Garotinho em primeiro turno. Wladimir, se tem ou não futuro, depende do quanto se prender ao passado. Hoje, não faltam adversários, até mais preparados pelo tempo. Que Wladimir não se enfraqueça pelo passado, pois só ele tem a perder. É a fraqueza dele, até aqui. O pai deve se manter distante.

George – Por vezes é algo da retórica política, mesmo que nos soe desagradável. Se entra no campo da ilegalidade ou ameaça ao Estado de Direito, aí é outra coisa. Bolsonaro está aí como exemplo negativo do que pode causar. Já sobre o limite dos pais, este será dado pelo prefeito. E será tanto ou mais permissivo quanto ele julgar que deve ser. Contudo, algumas concessões seriam inevitáveis. No campo das lealdades, Wladimir tem sim débito com o capital político de seus pais. A questão é o “como” irá encaminhar as demandas que chegarão vindas deles.

Igor – A sinalização é muito negativa. Talvez um dos maiores trunfos de Wladimir na sua articulação política seja a percepção pela maior parte da população de que ele atua com independência em relação aos pais nas decisões administrativas e estratégias de políticas públicas. Manter o governo com essa imagem não envolve apenas afirmações sobre liderança, mas demonstrações públicas sobre os limites da articulação dos pais.

José Francisco – Não estava presente obviamente nessa reunião e não conheço detalhes sobre seus bastidores. Como representante de uma grande parcela de empresários, e me refiro ao comércio, não sou afeito a essas terminologias políticas. Não posso comentar o que alguém disse, se não ouvi. A política tem dessas coisas. Prefiro dizer que isso faz parte dos bastidores da política, que pouco que conheço.

Maria das Graças – O sucesso de um governo democrático dá-se através da separação dos poderes, que devem ser independentes e harmônicos entre si. Quaisquer tentativas de interferência ou intimidação na atuação do outro é passível de atrito e prejudicial à população. E deve ser combatida para não comprometer os limites nas atribuições de cada esfera. Quanto ao governo, ele deve ser gerido de forma independente pelo candidato que pleiteou o cargo, visto que a população o elegeu e não a sua família à Prefeitura.

Raul – O prefeito vem de uma família muito unida e com forte participação na política, não usar a experiência dos governadores seria um contrassenso. Entretanto, entendo que tem governado de forma independente. Logicamente, as suas ações são resultado da sua formação técnica e da educação familiar. Vejo como positiva a paixão com que trabalha. E, como negativa, a personificação dos problemas, em detrimento da institucionalização dos mesmos.

Folha – O governo abriu a última semana de abril com 23 vereadores dos 25 vereadores. E chegou a junho com 15, após aprovar 12 dos 13 projetos do seu pacote de austeridade, três deles com cortes ao servidor. Favoráveis a eles, três edis, no entanto, foram contrários ao Código Tributário, retirado de pauta duas vezes. O governo agora articula para reconquistar a maioria mínima para aprová-lo. Como avalia o racha na base e essas idas e vindas?

Carlos Alexandre – Acho que Wladimir esqueceu o traquejo de parlamentar. Que fica sempre entre a política do seu governo e os interesses da sua base, disputa ainda mais dramática no nível municipal. Não é fácil, ao vereador, pensar no orçamento e no bolso do seu eleitorado. Faltou diálogo sobre mudança de tributos. Wladimir, com mudanças sem debate prévio, abriu espaços ao protagonismo dos edis contrários. Criou uma plataforma para seus opositores; pior, criou novos opositores. E regime de urgência para tratar de Códigos é inconstitucional.

George – Os rachas devem ser contextualizados. No caso da pauta tributária, parece que os vereadores sofrem assédio ou são eles mesmos representantes diretos de determinados grupos de pressão importantes. O empresariado local, a despeito de termos um dos piores cenários de justiça tributária do planeta Terra, costuma se organizar invariavelmente quando o tema envolve tributação a partir de capacidade real contributiva. Portanto, diante destes grupos, pode falar mais alto para determinado vereador a lealdade a estes do que ao prefeito.

Igor – A perda de apoio legislativo em pautas antipáticas à população, como medidas que afetam servidores e aumento de impostos, é esperada. Porém, ainda vejo possibilidade de o governo conseguir rearticular a base em torno de uma proposta comum. Por mais impopulares que sejam essas medidas, dificilmente o município conseguirá sustentabilidade de longo prazo sem atuar nas duas pontas: redução de custos e aumento de receitas.

José Francisco – Na verdade, 13 vereadores se comprometeram a votar contra o novo Código Tributário, a partir, creio eu, do resultado de uma histórica união de 10 entidades representativas de classe. Nossa intenção passa longe de tentar provocar um racha na base legislativa do governo. O que não queremos é aumento de impostos. E nem é porque não queremos, mas, sim, porque não podemos. Não temos condições de absorver reajuste de impostos em nenhum nível.  Essa é a questão.

Maria das Graças – É preciso governar com liberdade, verdade, comprometimento, legitimidade e sem idas, para que as vindas também não se façam necessárias. Assim como o Legislativo deveria cumprir as suas funções de forma harmônica e independente dos demais poderes. O cenário atual e as interferências acabam por insinuar que há imposição de limites entre os poderes, o que não é, nem de longe, saudável para uma sociedade democrática como a nossa.

Raul – No meu ponto de vista o processo está errado desde o início. Os vereadores se devem ao povo, os cargos em comissão se devem a projetos institucionais de qualidade, o prefeito tem que dialogar com a Câmara e explicar as suas ideias. Acredito que o acordo de apoio inicial deu a falsa sensação de apoio incondicional e “precarizou” a relação entre o Legislativo e o Executivo municipais. Todos perdemos com isso.

Folha – Apesar de votaram a favor de 12 dos 13 projetos do governo, os edis Raphael Thuin (PTB), Bruno Vianna (PSL) e Fred Machado (Cidadania) ficaram com o comércio e contra o Código. Os dois primeiros foram punidos com a exoneração de DAS e RPAs indicados, o que levou um projeto importante e exitoso como o Paraesporte a ser abrigado na Uenf. Os dentes do governo têm como morder sem mastigar junto o interesse social?

Carlos Alexandre – Os vereadores fizeram o que era certo, o que não significa, necessariamente, backlash (folga) da sociedade civil. O errado está em pensar que o social e o esporte só podem vir do Estado. Certo mesmo são esses vereadores buscarem a iniciativa privada desde sempre. A sociedade deve ser solidária, não dependente inteiramente do Estado. Contudo, apesar de fazer parte da política, é um erro de um governo em início começar a se vingar dessa forma. É uma péssima mensagem.

George – Não acompanhei os detalhes nesse caso, as punições pela falta de lealdade destes quadros do Legislativo. Precisaríamos compreender quais ganhos ou perdas, pensando em consequências para a sociedade, decorreram da mudança de lócus do projeto para a Uenf. Interesses da sociedade devem ser pensados nas consequências positivas ou negativas dos movimentos ocorridos no âmbito político. A priori a sede em si não implica eficiência, eficácia ou efetividade. Importa é o “como” se implementa uma política pública.

Igor – Os efeitos colaterais de rompimentos políticos, invariavelmente, acabam atingindo a população na maioria das vezes. A extensão do dano é diretamente ligada à qualidade da política e da composição promovida, principalmente, pelo Executivo. A percepção que tenho quanto à atuação de Wladimir, nesse sentido, ainda é positiva, dentro das circunstâncias brasileiras. Porém, é preciso que haja demonstrações práticas dessa disposição em fazer diferente. Ao tomar medidas que levem um projeto social a buscar pouso em outra jurisdição, a sinalização é muito ruim.

José Francisco – A questão não é morder nem mastigar. A questão é perceber que o eleitor não quer engolir esse tipo de coisa. Eu vejo esse tipo de coisa na esfera políticas, da qual sempre mantive a prudente distância. Os vereadores tomaram posição com o que acham justo. Essa questão de cargos, retaliações, fica neste âmbito. Não faz parte da nossa pauta.

Maria das Graças – Enquanto a união poderia fazer bem mais pela população, infelizmente, muitas vezes é a sociedade quem sofre com as disputas políticas. É preciso que o Executivo e o Legislativo tenham o mesmo foco: o bem-estar da população. A população não está muito preocupada com os “dentes do governo”. A população, a mesma que elegeu os representantes dos poderes, quer segurança para que ela trabalhe, preservação de seus direitos e saúde, especialmente nesse período de pandemia e calamidade.

Raul – Primeiramente, é importante destacar que a vinda do Para-Esporte e o Via Esporte para a Uenf é um sonho antigo. Não há relação política, nem partidária nisso. Entretanto, entendo que os cargos comissionados não deveriam ser tratados como moeda de troca de votos, mas sim para o atendimento de projetos de interesse da sociedade. Se o projeto é importante, deve rever recursos, independente do padrinho político do mesmo. Também entendo que a colocação de servidores públicos em cargos estratégicos valoriza o funcionalismo.

Folha – Thiago Rangel (Pros) foi um vereador que saiu do governo e voltou após ganhar cargos na Empresa Municipal de Habitação (Emhab), para tentar aprovar o Código Tributário. Como avalia esse aparente toma lá/dá cá? É um reflexo local do que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) chamou de “presidencialismo de coalizão”? Há contradição com a afirmação pública do prefeito: “acabou a época do cabide de emprego”?

Carlos Alexandre – O eleitor do Thiago Rangel deve vê-lo como quem vendou o voto pelo cargo, e cobrar dele isso. Nosso desenho institucional, começando pelo constitucional, permitiu isso. Wladimir não fugiu à regra: trocou voto por cargos. Isso não é um problema antijurídico, é um problema de desenho institucional. Faz parte do processo político, para o bem e para o mal.

George – O termo “presidencialismo de coalizão” é criatura de Sérgio Abranches (sociólogo e cientista político) e tenta explicar os arranjos da construção de maiorias legislativas, dotadas de instabilidade estrutural, no mundo. A negociação envolve tanto a grande política de princípios, valores e programas, quanto a pequena política de cargos, verbas para as bases. A própria complexidade do processo legislativo opera com as duas lógicas. Demonizar uma delas significa inviabilizar os processos de decisão em sociedades dotadas de alta complexidade.

Igor – Sim. Dentro da política, há, sim, espaço para distribuição legítima de cargos entre aliados. O grande problema é a qualidade dos quadros que são alocados. Historicamente, os cargos assumidos atendem apenas a critérios de afinidade, com a competência técnica para o cargo ficando totalmente escanteada. Extirpar essa prática é desejável, mas sou bastante cético em relação a essa possibilidade, principalmente em contextos mais desafiadores à articulação política, como vem sendo a pandemia.

José Francisco – Os políticos dizem que faz parte do jogo e o jogo político muitas vezes é questionável. Para não entrar em um campo que desconheço, prefiro focar na nossa questão que é meramente econômica. Política e econômica caminham juntas, mas muitas vezes são antagônicas. O fato de estarmos tratando disso aqui é um avanço. Para resumir, o ideal seria que tivéssemos avanços políticos e avanços econômicos, e desta forma certamente alcançaríamos um denominador comum, que é o que perseguimos.

Maria das Graças – Esse arranjo político-institucional, com a finalidade de ocupar cargos no governo diverge completamente da afirmação: “acabou a época do cabide de emprego”. Tais alianças somente teriam funcionalidade se, em um mundo ideal, prevalecesse a união de medidas democráticas e éticas em benefício do bem-estar da sociedade e desenvolvimento do município, independentes de suas bases.

Raul – O sistema presidencialista faz com que o poder executivo tenha que dialogar constantemente com o legislativo. A troca de favores ou a indicação de cargos em comissão como contrapartida ao apoio político fragilizam e corrompem a democracia. Infelizmente é uma prática comum nos governos em nível federal, estadual e municipal. Essa “facilidade” termina criando muitos “reféns” nesse processo e afeta até a qualidade da eleição legislativa.

Folha – Os vereadores que saíram do governo reclamaram de pouco tempo para estudar os projetos. Assim como os segmentos da sociedade por eles afetados. Com o setor produtivo, o diálogo agora caminha para tentar aprovar o Código. Mas esse debate não teria que ser prévio? A retomada do Conselho Municipal de Desenvolvimento (Comudes) é um passo necessário nesse sentido? Como avalia o novo Código Tributário? É uma demanda fiscal?

Carlos Alexandre – Aí reside o grande erro deste governo. Qualquer alteração tributária, ainda mais alterando a carga tributária, deve ser amplamente debatida. Tentaram impor mudanças sem qualquer debate. Grande erro. Pouca importa o órgão. Não há monopólio no debate. Todos os setores interessados devem participar. E repito: a Constituição Federal, a Estadual, nossa Lei Orgânica, todas proíbem regime de urgência para aprovar Código; penso que também para alterar, ainda mais mudanças substanciais.

George – Eu não tenho os detalhes e espero que novo Código vá em direção do enfrentamento dos problemas de injustiça tributária que assolam o país. Nem que seja nos limites do âmbito local, mitigando injustiças encontradas no Brasil. Abordando o problema do debate, eis um ponto e tanto. Medidas assim, para serem recepcionadas enquanto legítimas, precisam da participação dos grupos interessados e dos diretamente afetados. A negociação é que torna mais ou menos democrática a tomada de decisão.

Igor – A discussão ampla com a sociedade é essencial. O governo tem a prerrogativa de encaminhar a proposta, mas o Legislativo deve abrir amplo canal de participação popular. Além de tudo, há uma percepção generalizada no Brasil de que os impostos não são revertidos de forma satisfatória à população, logo, nenhum brasileiro está pré-disposto a aumentar sua contribuição ao erário. É tarefa dos poderes políticos comunicarem à população sobre a motivação da proposta e chegarem a um meio-termo entre o desejável e o possível.

José Francisco – Boa pergunta. A retomada do Conselho é essencial e isso foi anunciado em uma reunião recente na CDL da qual participaram o prefeito Wladimir e o seu vice Frederico Paes, além do presidente da Câmara, Fábio Ribeiro. É fato que as entidades ficam sabendo quase nada do que está sendo planejado e desta forma não pode se posicionar, e quando falo em posicionar quero dizer colaborar com ideias e argumentos. O Conselho é a solução porque, com ele, pelo menos o fator surpresa deixa de existir. Foi uma decisão madura do prefeito.

Maria das Graças – Sim, considerando a relevância da pauta e os possíveis impactos na sociedade, sobretudo, os negativos, o debate deveria ter ocorrido previamente de forma ampla, para evitar quaisquer concretizações às pressas. Não é correto abordar opções administrativas, sob argumento de elevação de receitas, de modo oculto. O novo Código é inoportuno em um momento em que a própria anuncia a possibilidade de superávit. O Código será o financiador do saldo positivo ao fim do ano? Deixo aberto o questionamento.

Raul – O debate tem que ser constante, a argumentação leva à solidificação das propostas. A apresentação de estudos prévios é de fundamental importância para entender o problema e as soluções propostas. A realização de audiências públicas permite a colaboração, importantíssima, da sociedade. Só após a realização de todas essas etapas poderemos ter certeza do voto em favor da sociedade. Em relação ao Código Tributário, me parece que faltaram todas essas etapas, inclusive uma etapa prévia, que seria a licitação dos serviços.

Folha – No dia 28, Wladimir anunciou parceria com a Associação Evangélica de Campos (AEC) para recuperar o Parque Alberto Sampaio, que seria chamado de Praça da Bíblia, incluindo o anfiteatro que leva o nome do falecido diretor teatral Antonio Roberto de Góis Cavalcanti, o Kapi. Após forte reação da classe artística, o prefeito fez um recuo parcial, mantendo o nome de Kapi ao anfiteatro e propondo a divisão do parque público entre artistas e religiosos. Dará certo? O Conselho Municipal de Cultura (Comcultura) não deveria ter sido consultado antes?

Carlos Alexandre – O governo recuou pela pressão, e isso é um bom sinal, pois mostra a disposição para dialogar. Só o futuro dirá se vai dar certo. Não há impedimento para a divisão, desde que definam bem como o imóvel será compartilhado. Deve começar por restaurar o espaço, que está bem deteriorado. Sobre a comunicação ao Conselho, teria sido boa política o diálogo prévio.

George – Sem dúvida. O Conselho é órgão plural, envolve a sociedade civil e deveria sim ter sido consultado. Considero esse tipo de demanda preocupante. A despeito de termos uma maioria cristã no Brasil, as minorias continuam pagando impostos e não devem ser esmagadas simbolicamente. Eis o que diferencia sociedades democráticas de regimes com pretensões totalitárias. As minorias são protegidas da “tirania das maiorias” como diria Tocqueville. De todo modo, a despeito da tentativa de conciliação, o avanço da pauta em si não é bom sinal.

Igor – A consulta deveria ter sido feita anteriormente. A princípio, parece haver um antagonismo entre o uso que será feito pela AEC e o uso que seria feito pela classe artística. Sem trocadilhos, eu não apostaria numa conciliação entre os dois atores.

José Francisco – Pelo que acompanhei pela imprensa, o prefeito buscou uma espécie de parceria pública com um setor que não é essencialmente privado. Essa é uma experimentação que só saberemos o resultado depois que começar a funcionar. As praças cumprem o papel de centros de convivência independente de religião. Mas é possível a convivência ecumênica. Não dá para julgar antes dos resultados. Sobre o anfiteatro abrigado pelo Parque, o Conselho de Cultura poderia e deveria ter sido consultado, mas parece que o problema foi resolvido.

Maria das Graças – Vale ressaltar que o Brasil é um Estado Laico, e isso significa que nenhuma religião tem prioridade sobre as outras e que o Estado não pode nem apoiar nem impedir as práticas religiosas. O dever do município é priorizar a revitalização e a conservação das áreas públicas, para fins de fomentar, democraticamente, atividades de lazer e cultura para toda a população, independente de religião.

Raul – A procura de parceiros para resolver os problemas da cidade é extremamente válida, a troca de exigências em função do serviço prestado é que me parece incorreta. O Estado é laico e os espaços são de todos e não de uma religião específica. Entendo que nesse ponto também faltou diálogo e comunicação.

Folha – Em 11 de junho, ao programa Folha no Ar, da Folha FM 98,3, Wladimir listou as realizações do seu governo: 1) pagar salários dos servidores em dia, 2) pagar dezembro e 13º deixados em aberto pela gestão passada, 3) retornar as vans ao Centro, 4) reabrir o Restaurante Popular, 5) recuperar 100 km de estradas vicinais e 6) retomar as obras do Shopping Popular. Como você analisa?

Carlos Alexandre – São medidas positivas, mas ainda há muito a fazer. As ruas de Campos estão estado deplorável, acidentes se multiplicando. Os hospitais precisam de reformas. Mas penso que o Governo está atuando, está trabalhando. Não há inércia.

George – Bem, são ações concretas e importantes. Mas é importante notar que algumas destas, como pagar salários em dia, são rotina. Perplexidade mesmo é quando não conseguem, vide o governo anterior. As outras medidas envolvem um pouco mais de pro-atividade e atendem demandas existentes, vide o Restaurante Popular ou a recuperação das estradas vicinais. O porém é que ainda estão longe da ousadia, da invenção, da inovação. Campos precisa buscar novas dinâmicas sociais, culturais e econômicas.

Igor – As medidas elencadas pelo prefeito parecem ter tido impacto positivo na opinião pública. Parte da entrega se deve ao sucesso na articulação política nacional e estadual; parte se deve a uma conjuntura econômica mais favorável aos municípios produtos de petróleo. O prefeito deveria aproveitar o bom momento junto à população para estruturar medidas de longo prazo, como vem tentando fazer com a reforma tributária e mudanças administrativas. O risco é o governo se acomodar com o bom ritmo até agora e abandonar as medidas de equalização fiscal.

José Francisco – Ele assumiu com duas folhas de pagamento atrasados e está solucionando o problema. O Restaurante Popular era promessa de campanha e o Camelódromo, embora particularmente considere desafinado com o conjunto arquitetônico do Mercado Municipal, é uma obra em curso, onde resta dar tratamento final. As vans no Centro, na avenida 7 é uma reivindicação dos comerciantes para tentar revitaliza aquela parte da área central. Os 100 quilômetros de estradas são essenciais para o redesenho da agropecuária. A análise é positiva.

Maria das Graças – A pontualidade do pagamento dos salários dos servidores trata-se de um dever do município e deve sempre ser tratada de forma prioritária. É de suma importância mantê-los sem atraso, para que não se incorra em ato grave contra o servidor. No entanto, não há motivos para a gestão pública vangloriar-se, e ainda há muito a ser feito. O pagamento do saldo remanescente do 13º de 2020, por exemplo, não foi efetivado para todas as categorias. É urgente trabalhar em prol da população, sobretudo da parcela mais carente.

Raul – Indiscutivelmente um trabalho de destaque, fruto da dedicação de muitos e da liderança do prefeito. Certamente, a arrecadação ajudou, mas a dedicação, o conhecimento e o preparo do funcionalismo e do Executivo municipal levaram a esse resultado. Sem dúvida o resultado é fruto do de um trabalho coletivo. Nesse caso, estão todos de parabéns!

Folha – O governo Wladimir já promoveu dois lockdowns em Campos este ano, para tentar conter a segunda onda da pandemia da Covid. O último foi abreviado pela mobilização do mesmo comércio que até aqui barrou a aprovação do Código Tributário. Como analisa o combate à pandemia pelo poder público municipal? Maior empregador do município, junto da Prefeitura, o comércio goitacá retoma a força política que já teve em passado recente?

Carlos Alexandre – Acho que o Governo atuou positivamente no combate. Foi rígido quando deveria ter sido e soube a hora de flexibilizar. É triste ver o Centro da cidade abandonado, porém. A revitalização do Centro tem que entrar na pauta dessa relação dos comerciantes com o governo. Penso, sim, que o comércio está retomando um papel político importante.

George – Creio que a Prefeitura tem tentado dar conta das demandas da pandemia. Porém, tem se mostrado porosa a interesses de determinados grupos, que só têm mirado no curtíssimo prazo. Contudo, o acompanhamento dos leitos em UTI tem sido o ponto de inflexão, onde o prefeito toma suas decisões de maior ou menor abertura. Quanto ao setor do comércio, a minha pergunta é: quando estes atores deixaram de ser politicamente relevantes? Mesmo atuando nas franjas, o empresariado sempre manteve proximidade com o poder local.

Igor – Para ser justo, desde o governo Diniz a Prefeitura de Campos se destacou pela adesão à ciência. Entendo que Wladimir continua com saldo positivo, entre erros e acertos, inevitáveis num momento delicado como o que vivemos. O pós-pandemia traz muitas dúvidas sobre o futuro das vendas presenciais. Talvez, uma estratégia adequada seria a Prefeitura usar uma via de mão dupla: apoiar os comerciantes com inovação em troca de apoio a projetos estratégicos na visão da administração, como a reforma tributária.

José Francisco – Não se discute aqui se houve ou não a necessidade do lockdowns. O que sempre advogamos é que o comércio não era vetor da transmissão do vírus. Nenhum outro segmento seguiu tão à risca os protocolos. Mas foi o setor que pagou o preço mais alto. É exatamente por isso que não temos condições de arcar com reajustes de impostos. Mais de 15% do setor não suportou a pandemia e fechou. O restante queimou suas reservas. Quanto à força, não quero medi-la, mas ela existe e um exemplo cabal disso foi a união das entidades.

Maria das Graças – O combate à pandemia, ainda que por medidas drásticas, salva vidas. No entanto, o cortejo entre o fechamento de postos de trabalho e a proteção à saúde advindas resultou em decisões delicadas quanto ao fechamento temporário, haja vista que os danos no setor do comércio foram grandes. Controlar a disseminação com criação de locais exclusivos para a testagem e diagnóstico, tratamento e monitoramento da Covid-19, poderia ser uma forma da Prefeitura evitar novos fechamentos no município e proteger também a economia.

Raul – O governo acertou quando chamou o comércio e os empresários para o debate sobre a situação do município em relação à Covid-19. Os números apresentados, fruto do trabalho do Dr. Charbell, da sua equipe e toda a secretaria de Saúde, permitiram que os comerciantes entendessem a situação e apoiassem as ações que foram tomadas. Deu muito certo. Não continuar com a mesma metodologia para o Código Tributário me pareceu um contrassenso. O trabalho no combate à Covid-19 está sendo muito bom, sempre utilizando a ciência como base.

Folha – Dos comerciantes aos médicos, a categoria é contra terceirizar a administração das unidades e profissionais da Saúde Pública de Campos. Após a tentativa desastrada de fazê-lo sem licitação com uma empresa sob a qual pairavam denúncias, o projeto agora é fazê-lo por pregão eletrônico, exigindo experiência na gestão de saúde de uma cidade do porte de Campos. Parece ser um ponto inegociável do governo. Qual a sua opinião? E por quê?

Carlos Alexandre – Veja, a saúde é aberta à iniciativa privada. Portanto, havendo processo licitatório e equilíbrio financeiro na contratação, acho que será muito positivo para os campistas. O processo deve ser o mais transparente possível e a sociedade precisa fiscalizar os serviços.

George – Não me parece ser boa solução. Há inúmeras controvérsias envolvendo qualidade da gestão e sustentabilidade. A terceirização, na média, não tem produzido os resultados prometidos. Não há garantia alguma que a terceirização por si produzirá melhorias. Isto é fetichismo.

Igor – Sou a favor de todas as medidas que tragam mais eficiência ao setor público. Um grande problema no Brasil é que, dada a dificuldade de realizarmos mudanças, deixamos determinadas situações chegarem a um ponto tão esgarçado que a mudança se impõe de forma abrupta, sem diálogo. Acho que a experiência é válida, mas precisamos atribuir objetivos, metas claras, bem divulgadas à população em geral e às partes interessadas e, principalmente, avaliar os resultados.

José Francisco – Temos em Campos a Sociedade Fluminense de Medicina e Cirurgia, o Sindicato dos Médicos, os Conselhos referentes a cada uma das atividades médicas e correlatas, como enfermagem entre outras. Pelo que vejo eles estão atuantes nesta questão.

Maria das Graças – É um erro absoluto entregar a administração das unidades hospitalares e dos profissionais da Saúde Pública aos cuidados de uma instituição privada. Além de representar o início da privatização da Saúde, esse novo modelo de gestão já se mostrou ineficaz em diversos outros municípios. Enquanto há grandes hospitais públicos sob administração pública que são exemplos bem-sucedidos de gestão, inclusive, no Estado do Rio. A gestão dos serviços de saúde deve ser realizada por profissionais existentes na administração pública.

Raul – Alguma coisa precisa ser feita e é uma possibilidade. Quem tiver uma opção melhor que a apresente. Pessoalmente acredito que, antes da entrada da iniciativa privada, poderíamos tentar chamar o funcionalismo municipal para administração da saúde. Preocupa-me o fato de abrimos mão do controle público da saúde. Além de valorizar o servidor, teríamos uma economia de recursos. Não sei como está o diálogo com o funcionalismo da Saúde em relação ao tema. Agora, se vai ser feito, fazer esse processo através de uma licitação me parece correto.

Folha – Até a primeira semana de julho, Campos recebeu em 2021 R$ 227.935.796,89 de royalties e Participações Especiais (PEs) do petróleo. No mesmo período de 2020, o governo Rafael Diniz (Cidadania) havia recebido apenas R$ 137.679.350,12. Ao governar o Brasil no boom internacional das commodities, o ex-presidente Lula (PT) disse que um governante precisa ter sorte. Wladimir está tendo?

Carlos Alexandre – Sorte é ter royalties (risos). Por certo que todo governo precisa da ajuda dos astros, sem dúvida. Mas também sem diálogo e trabalho, não há sorte que resolva. Penso que Wladimir poderia se abrir mais ao diálogo com os diferentes setores da sociedade, tomar medidas mais negociadas, debatidas. Isso atrai apoio. No mais, trabalho duro, que penso estar existindo.

George – Ao que parece, Lula é leitor da Maquiavel. Sim, a sorte é importante. Lidar com uma tragédia, uma intempérie, pode queimar o capital mesmo do político mais capaz. Mas, aí com Maquiavel, sorte sem habilidade, capacidade e inteligência, não é garantia de nada. O cenário mais interessante ao político é ter uma bela onda para surfar. E saber surfar. Dominar a técnica. Sim, Wladimir se depara com um cenário melhor que o do governo anterior. Torço que ele e seu grupo tenham inteligência política para saber aplicar esses recursos.

Igor – Sem dúvidas, o cenário hoje é muito mais favorável ao governo atual. A conjunção de dólar alto e petróleo voltando às máximas de 2018 são extremamente favoráveis aos municípios produtores. Porém, o contexto do atual “boom de commodities” é muito diferente. Hoje, temos entes federativos endividados, com folhas de pagamento elevadas, sem espaço para expansão fiscal. O governo precisa ter o discernimento de aproveitar o bom momento para equalizar as contas e firmar bases de sustentação para o longo prazo.

José Francisco – Olha, espero que isso seja mesmo verdade. Acreditamos na força do trabalho, mais o fator sorte existe, sim. Realmente no que se refere a questão dos royalties, como já coloquei em resposta anterior, o cenário é promissor, com a expectativa de alta crescente do barril de petróleo no mercado internacional. Esse preço internacional é a referência para o pagamento de royalties. Queremos que o governo Wladimir dê certo, como desejamos que os anteriores também tivessem dado.

Maria das Graças – O prefeito precisa ter competência, princípios éticos e valores honestos para gerir a administração pública de forma idônea, sempre pautando a sua gestão no cumprimento das normas previamente estabelecidas e no atendimento aos princípios de legalidade e eficiência. Cabe ao governante do município elaborar adequadamente o orçamento municipal, antevendo as receitas e estabilizando as despesas, conforme programação apropriada, em benefício da assistência, cuidado e proteção da população.

Raul – Entendo que a sorte mascara o trabalho e a dedicação de um grupo de trabalho. Os valores têm aumentado, entretanto. As decisões tomadas para o pagamento das folhas em atraso e os fornecedores não guarda relação com a sorte. A chamada sorte não está impedindo o trabalho político para a chegada de dinheiro federal ou a abertura do Restaurante Popular.

Folha – Nestes seis meses, quais foram, em seu entender, as maiores virtude e erro do governo Wladimir? Se ele pudesse escutar um conselho seu à administração dele, qual seria?

Carlos Alexandre – A maior virtude é o trabalho. Não vejo um governo se escondendo dos problemas, mas enfrentando-os dentro da sua ordem de prioridades. O maior defeito foi revelado na proposta do Código. É uma péssima ideia tentar ser patrão da Câmara. Rosinha fez o mesmo entre 2014 e 2015, e derrubei como inconstitucional o Código Tributário inteiro dela no TJ. Meu conselho é dialogar mais com vereadores e a sociedade. O governo de Wladimir, até aqui, é bom. Para ser excelente, precisa não repetir erros que seus pais cometeram.

George – Penso que há um esforço importante de trazer recursos extras para a cidade e é de inegável relevância o retorno da proposta do Restaurante Popular. Entre os erros está a abertura para determinados grupos de pressão que não estão e jamais tiveram qualquer tipo de compromisso com o interesse público. Por fim, se pudesse dar um conselho, é preciso olhar para as periferias da cidade. Penso que ali há uma gente que precisa de requisitos mínimos de dignidade, que envolve saneamento e mobilidade urbana de qualidade, para deslanchar.

Igor – Há méritos na condução da articulação política junto ao Estado e ao Governo Federal. O governo municipal também promove uma comunicação mais eficaz que o antecessor, o que pode contribuir para uma melhor impressão sobre o primeiro ponto. A famosa aglomeração no Centro, na inauguração do Restaurante Popular, foi uma péssima sinalização, bem como a açodada tramitação da reforma tributária. Quanto ao conselho, o governo não pode perder de vista que a situação das contas públicas ainda é sofrível e demanda um ajuste de longo prazo.

José Francisco – Movido por sua juventude, com uma certa experiência, já que foi deputado federal, Wladimir mostra grande capacidade de trabalho. O erro foi não discutir questões como o do Código Tributário, mas parece que ele se recuperou ao anunciar a retomada do Comudes. O conselho é exatamente esse: discutir, acionar conselhos e entidades em todos os níveis, governando junto com todos. Boa parte das lutas da CDL não são afeitas somente ao comércio, mas em prol de toda sociedade.

Maria das Graças – Aconselho ao prefeito a ter fidelidade com o seu povo, disponibilidade para ouvir a população, constante postura de diálogo com as entidades sindicais aliada à capacidade de decisões inteligentes a serem adotadas sempre em prol dos atendimentos aos anseios coletivos, comprometimento com a gestão, além da valorização e estímulo ao servidor público que é, de fato, quem dá a devida sustentação ao município. Aconselho ainda, que o líder do Executivo busque estimular, obstinadamente, o desenvolvimento econômico de nossa cidade, bem como fortalecer e recuperar os serviços existentes.

Raul – Na primeira resposta já esclarecemos esse ponto. O único conselho que daria seria trabalhar na institucionalização dos problemas, na comunicação e no debate com a sociedade. Logicamente, incluindo a Câmara. Através do diálogo e do debate a gente vai mais longe.