Bolsonaro e o
cristofascismo brasileiro: relação cristianismo e política*
* Publicado originalmente na ASCOM/UENF.
Em 1970, a teóloga
alemã Dorothee Sölle criou o termo “cristofascismo” para se
referir às relações entre o partido nazi e as igrejas cristãs no
desenvolvimento do Terceiro Reich. Em 2020, ao lançar o livro “Pandemia cristofascista”
(Editora Recriar), o também teólogo Fábio Py, docente do Programa de
Pós-Graduação em Políticas Sociais da UENF, resgatou o termo, trazendo-o para o
contexto brasileiro. O cristofascismo brasileiro é, segundo Py, a
aliança entre igrejas cristãs e bolsonaristas para a implantação de
um governo autoritário, com características neofascistas e
ultraliberais.
São muitas as analogias com
o cristofascismo alemão. Assim como Hitler, Bolsonaro utiliza jargões
cristãos como parte preponderante de seus discursos, como o clássico
“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Assim como o ditador
nazista, o presidente brasileiro também participa de eventos promovidos pelas
igrejas cristãs, relacionando-se com seus líderes. E, dentre suas estratégias
para alçar o poder e manter sua imagem em alta, se vale de seguidas conversões
ao cristianismo.
Segundo Py,
o cristofascismo bolsonarista “promove-se por meio de uma
teologia política autoritária, pautada hoje no clima apocalíptico
do coronavírus, baseada no ‘ódio à pluralidade democrática’. Esse ódio é
salpicado por técnicas governamentais de promoção da discriminação, de ódio aos
setores ‘heterodoxos’. Diante da expansão do coronavírus no Brasil,
foi somada sua característica antidemocrática ao discurso
economicista como justificativa para a explicita permissão da
‘política da morte’ eugênica cujos alvos são os pobres, os mais velhos, os
diabéticos e os hipertensos”.
“A artimanha construída pela cúpula o desenha
numa cristologia profana, apontando-o como messias, servo sofredor,
ungido e eleito da nação. Faz isso para reagrupar as forças a fim de
manter, a duras chicotadas, a implementação de medidas ultraliberais que
hoje entregam à morte os mais vulneráveis” afirma.
Em sua análise Py salienta que, em resposta ao
contexto mundial e brasileiro da pandemia de Covid-19, Bolsonaro acirrou ainda
mais a associação de seu governo ao cristianismo, evocando uma espécie de
“guerra dos deuses”, como define Michel Lowy.
“Nessa guerra pelo Deus cristão, Bolsonaro alimenta
a base de seu governo autoritário ao reforçar sua gestão do ideário
maniqueísta. Ao assumir-se como presidente dos cristãos, simplifica os
conflitos políticos, que passam a transubstanciar-se em embates entre bem
versus mal. Em tal arranjo, a guerra dos deuses se traveste na luta entre
aqueles que representam o mal, em uma alegoria caricatural dos ‘comunistas’,
dos ‘humanistas’, ou dos ‘petistas’, e entre aqueles também alegoricamente
expressos como ‘cidadãos de bem’”, diz.
Nesta entrevista à ASCOM/UENF, Fábio Py fala sobre
as causas históricas para a ascensão do cristofascismo no Brasil,
chamando a atenção para o legado da ditadura militar — cujo ideário não foi
apagado com a volta da democracia — bem como para a responsabilidade do
“petismo” para a ascensão dos evangélicos no poder. Segundo o professor, mais
difícil que vencer Bolsonaro nas próximas eleições, será desarmar
o bolsonarismo. Veja a entrevista:
ASCOM
– Segundo a narrativa do Novo Testamento, Jesus era a personificação do amor ao
próximo. O presidente Bolsonaro já deu mostras suficientes de seu caráter
racista, homofóbico, misógino, agressivo, arrogante e completamente
insensível às mortes pelo coronovarírus. Como podemos entender este
fenômeno no qual um candidato tão distanciado desse ideal cristão possa, ao mesmo
tempo, para algumas parcelas da população, ter sua imagem aproximada à de Jesus
Cristo?
FÁBIO
– Existe um ideário medieval de que Jesus é o amor encarnado, dono de
uma prática pacifista. Esta é uma tradição do catolicismo
hegemônica, contudo, alguns textos do evangelho destoam disso. Eu não
sei dizer que ser pacífico, no mundo antigo, era você sair da sua casa e
largar sua família como as narrativas indicam nos evangelhos. E tampouco falar
que não veio trazer paz, mas espada, como Jesus indica aos apóstolos. Então
esse é o primeiro elemento que tem que ser problematizado: essa imagem de um
Jesus pacífico, que dá a outra face etc. Existem vários grupos partidários do
judaísmo, da época de Jesus, nos quais, vez ou outra ele se enquadra.
Eu não acho que Jesus foi alguém tão pacifico em relação às
instituições religiosas e instituições do estado romano na Palestina. Na
verdade, ele foi contra as duas instituições de domínio sobre
os judeus na época. Na superfície, o cristianismo não tem muito
a ver com Bolsonaro. Mas temos que considerar que o cristianismo é um elemento
importante da civilização ocidental. E ele é absolutamente violento no seu
lado interno, dos mecanismos religiosos, como Xavier Pikaza indica,
pois renomeia as outras religiões, chamando alguns deles de satânicos,
demoníacos. Então essa própria agenda monoteísta interna do sistema
teológico do cristianismo é um problema, pois acumula praticas violentas
das demais tradições religiosas.
Estrategicamente, desde 2016, Bolsonaro vem tentando
cada vez mais se afirmar como um bom católico e evangélico. E aí vemos uma
série de conversões públicas dele, nas quais ele afirma: agora eu aceitei
Jesus. Estrategicamente, ele afirma isso nos eventos cristãos,
para poder sensibilizar de uma forma muito direta o público. Então, a via
do diálogo dele com o cristianismo não é de acordo com o seu caráter reflexivo
enquanto sujeito, que luta contra a homofobia, contra a discriminação, mas a
via dele de diálogo com o setor é a de tentativas ou indicações de
conversões. Foram diversas conversões ao catolicismo e,
principalmente, mais recentemente, ao público evangélico. Nos últimos
tempos, ele tem ido a várias celebrações religiosas na Assembleia de Deus, na
Igreja Universal, na Igreja Mundial do Poder de Deus. Ele vem frequentando
essas igrejas de forma muito direta e, com isso, tentando amplificar o seu
diálogo com a base. Portanto, Bolsonaro vem tentando se afirmar como
um convertido, e ao mesmo tempo, frequentar uma série de celebrações com o
setor evangélico. Essa é a forma com que ele vem tentando dialogar,
passando inclusive por cima dessa tônica dele misógina, a favor de armas etc.
Aliás, isso é interessante, pois o setor evangélico no Brasil é contrário ao
uso de armas e, mesmo assim, ele vem conseguindo suplantar essa dificuldade.
ASCOM
– O envolvimento de evangélicos na política, apoiando candidatos e mesmo
adentrando a arena política, vem se dando já há algum tempo no Brasil. Em que
difere o momento atual do que ocorreu nos últimos governos de esquerda?
FÁBIO
PY – A questão dos evangélicos na política já vem acontecendo há algum
tempo, antes mesmo da construção da bancada evangélica. Na verdade, isso vem
desde 1930, quando o governo varguista incentivou a criação de algumas
representações, organizações religiosas. Por exemplo, nós temos a
Liga Católica, formada em 1932, e a Confederação Evangélica Brasileira,
formada em 1934. Essas agências vão lutar também pela representação eleitoral
desses setores. A Confederação Evangélica consegue eleger, em 1936, o pastor
metodista Guaraci Siqueira, que depois vai ser eleito deputado federal. O
interessante é que ele tinha uma posição política de esquerda, era um
‘socialista cristão’. Também se mobiliza o catolicismo. Na ditadura
militar, há um apoio indireto das igrejas evangélicas, como a Assembleia de
Deus, a Batista, a Presbiteriana. Elas apoiam em silêncio a ditadura militar.
Em 1986, acontece um novo tipo de entrada do setor evangélico no meio político,
por conta de alguns grupos discipulados por evangelistas americanos que vão
começar a incentivar a participação política das igrejas. Então, a configuração
evangélica brasileira se redimensiona a partir de 1986, buscando uma
representação oficial de evangélicos no meio da política partidária. Já neste
ano, eles conseguem a eleição de alguns quadros, que vão começar a formar o
esboço do início da bancada evangélica. Isso vai ganhando cada vez mais
proporção e, a partir da década de 2010, eles conseguem criar a
Frente Parlamentar Evangélica.
O que acontece é que no governo PT o grupo
evangélico participou da governança petista. Vale à pena lembrar que a
área de direitos humanos ficou durante um tempo nas mãos dos setores
evangélicos chamados progressistas. Logo depois
Marcos Feliciano assume esse setor, e se distancia do governo
PT com intrigas públicas, como com Arolde de
Oliveira. Mas se amplificou, culminando no impedimento de
Dilma Rousseff, que foi amplamente convocado pela Frente Parlamentar
Evangélica.
Assim, o impeachment de Dilma
Rousseff foi levado na ponta do lápis por Marcos Feliciano,
Silas Malafaia e diferentes setores evangélicos
hegemônicos. Nesse contexto, surge a vontade de construção de um
governo cristão. Aí que entra o Jair Bolsonaro, que se batiza no âmbito do
próprio impedimento de Dilma Rousseff, percebendo o vácuo e a
necessidade da Frente Parlamentar Evangélica de ter um cristão como
futuro presidente. Nos últimos anos, o que se diferencia é isso: o governo
do PT ajudou a Frente Parlamentar Evangélica a ganhar força. Mas essa aliança
se desfez e eles ajudaram no impedimento de Dilma. Em seguida, passaram
a compor o quadro do governo Temer e, posteriormente, ajudaram
na construção do que chamamos hoje de bolsonarismo.
ASCOM
– O PT então pode ser culpado do surgimento do bolsonarismo por ter
contribuído para a ascensão dos evangélicos ao poder?
FÁBIO
PY – Eu diria que sim. Vários grupos atuaram na
construção do bolsonarismo, como o PT, o PSOL. As esquerdas
tradicionais, mesmo de forma indireta, ajudaram nisso. Ajudaram no
processo de construção de um “espantalho da esquerda”, um sujeito odioso,
que fala tudo que não é correto, justo e que tem posições contrárias
à democracia. Certamente, um dos responsáveis por isso é o setor de esquerda.
Ao longo desse processo, ocorreram algumas questões. Quero salientar que,
antes da eleição de Lula, quando se começava a pensar e mobilizar a
campanha eleitoral que daria a vitória a ele, em 2001, um
grupo evangélico progressista participou de uma reunião e assumiu que
vale a pena abrir o diálogo com instituições religiosas grandes, como eu
costumo chamar, com as grandes corporações religiosas evangélicas. A Universal
e todas essas igrejas foram chamadas para o diálogo e, a partir daí, o PT
passou a se relacionar com essas instituições representadas na Bancada
Evangélica. Então, há um grupo, um núcleo dentro do petismo que defende o
diálogo com grandes evangelistas, pastores como Silas Malafaia, Edir
Macedo, etc. Esses evangélicos progressistas que são os responsáveis
por esse diálogo. Isso foi até um passo importante, mas depois, ao longo
do tempo, foi causando uma série de rusgas e problemas. Novamente,
vale à pena lembrar que Marcos Feliciano assumiu, como liderança da Frente
Parlamentar Evangélica, a comissão de direitos humanos, causando uma série de
tensões, falando contra o setor LGBTQIA+, a favor da ‘família tradicional
brasileira’, e isso ajudou a dar mais força ainda para a Frente Parlamentar
Evangélica. Ao mesmo tempo, foi a partir do crescimento dessa Frente que
aconteceu a união bolsonarista. Então não há uma ligação direta entre
o lulismo e bolsonarismo, mas pode-se dizer que certas
instituições, grupos, tendências do setor evangélico já participavam do governo
petista e depois ajudaram a organizar e construíram muito fortemente o governo
que agora a gente se está vendo, que é o bolsonarismo, e que eu chamo
de cristofascismo brasileiro.
ASCOM
– Qual foi o motivo do rompimento dos evangélicos com o PT?
Fábio
Py – Eu diria que o motivo do rompimento
dos evangélicos com o governo Dilma foi essa questão de
que começou a ficar muito estridente que o governo não era tão favorável
à dita “familia tradicional brasileira”. Começou-se a falar
muito em ideologia de gênero, por exemplo, e essas terminologias começaram a
cada vez mais afastar o governo de Dilma Rousseff das pautas tão
importantes para o setor conservador evangélico. Mas eu queria também adentrar
um detalhe: a Igreja Universal do Reino de Deus, mesmo sendo favorável à
‘familia tradicional brasileira’, foi uma das últimas instituições a
romper com Dilma. Isso também tem que ser colocado na ponta do lápis: a Igreja
Universal do Reino de Deus, historicamente, desde Collor, é uma
instituição religiosa extremamente pragmática, preocupada com o poder. Ela
está sempre junto de quem ocupa o poder. Nesse momento, por exemplo,
já estão acontecendo várias negociações dos agentes da
Universal com os principais candidatos que começam a disputar a
Presidência, no caso Lula e Bolsonaro.
ASCOM
– Como podemos compreender historicamente o surgimento do
“Cristofascismo” no Brasil e no mundo? Quais seriam as causas desse fenômeno de
domínio das massas através da religião? Especificamente no Brasil, o que
contribui para isso?
FÁBIO
PY – O cristofacismo é um termo que eu utilizo a partir de uma
teóloga luterana chamada Dorothee Sölle. Ela usa o termo pela
primeira vez para fazer referência à vivência dela no nazismo. Doutora em
Teologia, foi professora em um seminário de Nova York, onde
teve acesso a grupos supremacistas brancos, percebendo o vínculo
desses grupos com o fundamentalismo e a luta deles contra os direitos humanos,
as mulheres, os negros etc. Dorothee afirma que há uma
conexão entre o nazismo e esses setores. E é essa conexão que ela vai
chamar de cristofascismo. Esses sujeitos supremacistas brancos
americanos, em nome de Cristo, discriminam e constroem um maquinário de ódio
contra os setores heterodoxos: mulheres, negros, LGBTQIA+ e, no
caso dos EUA, os latinos. Então o cristofascismo surge
assim. E aí eu faço uma diferenciação com a terminologia da Dorothee. Eu
reconheço a importância do fundamentalismo para a construção do governo
Bolsonaro, principalmente das grandes corporações evangélicas e católicas
conservadoras. O cristofascismo brasileiro, a que eu estou me
referindo, é a conexão destas grandes corporações evangélicas e católicas com o
governo cerceador de Bolsonaro. Elas ajudaram a construção dele, e agora
dão as mãos e ajudam a composição, a manutenção dele no poder, construindo uma
indústria muito pesada de signos cristãos de ódio a diferentes
pessoas, como os professores, os setores LGBTQIA+, negros indígenas e
quilombolas. Então, cristofascismo é uma larga composição hoje entre
as grandes corporações religiosas cristãs e o bolsonarismo. Eles fazem
isso a partir de uma linguagem comum: a linguagem do movimento dito
fundamentalista. Bolsonaro chega a utilizar desde jargões e até textos bíblicos
nas suas falas políticas.
ASCOM
-Temos visto a perda da popularidade do presidente Bolsonaro à medida em que
aumentam as mortes pela pandemia e que a CPI da Covid-19 avança em suas
investigações. Podemos vislumbrar o fim do cristofascismo a partir da
queda de Bolsonaro ou este movimento tende a continuar com outros atores
políticos?
FÁBIO
PY – Estamos vendo cada vez mais fritar o governo Bolsonaro, mas o que
acontece é que, embora o presidente esteja perdendo apoio popular,
o bolsonarismo vai ser um movimento difícil de ser desarticulado. Como
ocorreu nos EUA, onde, mesmo com a derrota de Trump,
o trumpismo ainda é um elemento forte. Quer dizer, existem parcelas
dessa comunidade, da comunidade americana e da comunidade brasileira que atuam
junto a práticas preconceituosas, racistas, e tudo o mais. Então, acho que
temos pela frente um amplo desafio, ainda maior que sua derrota nas eleições,
que é desarmar o bolsonarismo, que está absolutamente ligado em suas
raízes as antigas elites da ditadura civil-empresarial-militar
brasileira.
Nós não desarmamos esta construção hegemônica do
militarismo na sociedade brasileira, não prendemos os militares que se
utilizaram do governo para poder cassar, matar, praticar crimes contra a
humanidade no Brasil. Bolsonaro foi criado na ditadura militar. Ele era
militar à época, foi criado por ela e agora segue dissipando, a partir do
cristianismo, o seu ódio em direção a diferentes setores sociais e a classes
sociais distintas da dele. Então, o maior desafio é desarmar
o bolsonarismo, uma vez que nós não conseguimos desarmar o legado da
ditadura militar na sociedade brasileira e isso, evidentemente, ajudou a
construir o que nós chamamos hoje de bolsonarismo.
ASCOM
– Caso o presidente seja considerado culpado, sofra um impeachment e
eventualmente seja condenado na esfera criminal, que consequências isto poderá
trazer para as instituições religiosas que ajudaram a elegê-lo e ainda mantêm o
seu apoio?
FÁBIO
PY – Se o bolsonarismo não está desarmado,
o cristofascismo não será desarmado tão facilmente. As agências
religiosas seguem junto ao bolsonarismo. E seguem dando tons religiosos,
ensinando, agindo como ‘intelectuais orgânicos’ (Gramsci) no governo
e posteriormente também devem seguir. Então a gente tem um duplo desafio:
primeiro vencer Bolsonaro nas eleições, de forma pragmática. Segundo, é tentar,
ao longo do tempo, com um trabalho denso de formação crítica, educativa,
de formação social, tentar desarmar tanto a ditadura militar quanto
o bolsonarismo.
Caso haja impedimento e criminalização, espera-se
que as grandes corporações religiosas evangélicas e católicas sofram medidas
judiciais. O que eles vêm fazendo merece ser criminalizado, porque fecham os
olhos para as mortes das pessoas e para a ciência, em detrimento do ganho
financeiro, do ganho político. Essas instituições religiosas que abarcam esses
pastores que mobilizam o bolsonarismo merecem pelo menos servir de
exemplo sendo criminalizadas, pois estão cometendo crime contra a humanidade.
Meio milhão de pessoas não morrem à toa, morrem porque não há uma política
ampla do governo e também não houve uma conscientização religiosa e política
junto à população, isso tem que ser deixado bem claro.
ASCOM
– Estamos então vivendo o resultado de um duplo descaso: 1- a não punição dos
militares envolvidos em crimes durante a ditadura e 2- a “vista grossa” para a
proliferação de igrejas cujo único popósito é arrecadar dinheiro e
aumentar seu poder?
FÁBIO
PY – Na verdade, figuras como Bolsonaro só
estão no poder porque os militares não foram criminalizados. Não todos,
mas os militares que estavam no poder. Um dos responsáveis pelo que está
acontecendo é, sim, essa linha de pensamento militar brasileira. E também não
posso deixar de mencionar as instâncias religiosas que ajudaram de forma direta
a eleger o Bolsonaro. Não posso deixar de destacar o descaso das instâncias
religiosas cristãs às 500 mil mortes de Covid-19, inclusive protestantes
tradicionais, que tanto são considerados como intelectualizados e tudo
mais. Eles também desprezam a ciência hegemônica que constrói tratamentos e
vacinas contra a Covid e fizeram uma aposta em vários momentos por
remédios ineficazes como a cloroquina.
ASCOM – Como as milícias se encaixam no cristofascismo brasileiro?
FÁBIO
PY – Já se vem falando que a milícia é o estado. Posso
dizer de uma forma direta que Bolsonaro tem seu público fiel junto às milícias
do estado do Rio de Janeiro. É só olhar a própria moradia dele e quem são as
figuras que habitam aquela região, ou os próprios suspeitos do assassinato
de Marielle, vereadora do Rio de Janeiro.
Há muita discussão sobre a vinculação de Bolsonaro
com as milícias do RJ, mas, de forma mais conclusiva, a gente pode dizer que é
um quadro do militarismo que ajudou a nutrir as milícias, mas que está ligado
com todas essas práticas que já são clássicas desde a ditadura militar
brasileira, de rachadinha, esse tipo de coisa, que vem sendo levantado
agora, na própria CPI. Bolsonaro e seus filhos estão absolutamente vinculados a
essas práticas como vêm demonstrando as investigações.
Se a milícia se apodera cada vez mais dos espaços
públicos, das geografias e das agências do estado brasileiro, cada vez mais se
tem uma pragmática dentro do cristofascismo. Porque se há uma
conexão entre igrejas evangélicas e católicas com a linguagem do estado
cerceador brasileiro atual, as milícias são quem opera a prática disso, a
prática de violência contra diferentes setores. De forma não oficial, mas às
vezes oficial.
ASCOM
– Você vê algum risco concreto para a democracia brasileira neste momento ou se
o bolsonarismo não for desarmado? Podemos voltar a uma ditadura?
Fábio
Py – Primeiro temos que pensar que a ditadura militar não
foi descrita como ditadura nos seus cinco, seis primeiros anos. Foi a partir de
1970 que começou a se configurar uma ditadura civil-empresarial-militar. No
momento, é muito difícil se fazer uma análise mais detalhada sobre isso. Agora,
alguns elementos têm que ser considerados. Para o professor Michael Lowy,
não é possível mais falar de fascismo tal como era na década de 1940, 1950. Pra
ele, o que se tem a partir de 1960 são novas versões, quando não se faz
mais um governo totalitário, dissolvendo parlamento, construindo de forma
direta práticas violentas, de estado ou, no caso do Hitler, imperial mesmo, do
império do terceiro Reich. Para esse autor, virou uma pragmática dos governos
nacionais certos traços fascistas. Eu acho que é isso um pouco que a gente
passa com o bolsonarismo. Não tem aquela antiga configuração. Então não
temos mais as condições de antes de 1960, novas versões. São governos
pretensamente democráticos, mas com práticas de ódio internas intrínsecas a
esses estados. Bolsonarismo, para Michel Lowy, é um caso
desse tipo, trata-se de um neofascismo, por isso que utilizo
o termo cristofascismo. Pois nunca um governo (autoritário)
traçou tanta conexão com o cristianismo hegemônico no Brasil. Essa é
uma equação sinuosa. Agora, deve-se considerar outro dado: na atual gestão
se tem aproximadamente 7 mil militares trabalhando no governo. O que eu
quero dizer com isso é que, mesmo acontecendo a vitória de outro projeto que
não seja Bolsonaro em 2022, vai ser muito difícil desarmar esse governo cristão
militar. Desde o processo interno da eleição ao pós-eleição, tal como aconteceu
com Trump. O Bolsonaro já vem avisando, como o Trump fez também,
que não vai aceitar facilmente uma pretensa derrota nas urnas. Tudo isso tem
que ser colocado na ponta do lápis. Não é apenas derrotar nas
eleições, tem que tentar depois desarticular essa mobilização antiga
pró-militar, que existe desde 1964 no Brasil, destruir esse imaginário que
existe do militar como sendo uma possibilidade de construção governamental no
Brasil, com a possibilidade de golpes militares. Então eu diria que temos muito
trabalho pela frente. Primeiro, tentar de alguma forma derrotar o projeto
Bolsonaro em 2022. Eu preferia que fosse impeachment, mas…
nem mesmo a cúpula do PT deseja o impeachment, preferem
uma disputa eleitoral pois é mais rápida e menos desgastante.
E também pelo risco de ocorrer uma outra virada de mesa caso o impeachment aconteça
e o vice Mourão venha a ganhar novas cores. Então tudo isso tem de ser
pensado diretamente. Após a saída de Bolsonaro, seja por impeachment ou
eleição, é preciso depois seguir no processo de construção de diálogos e de
educação, de repensar essa brasilidade. Repensar e negar, lutar contra, de
forma direta, a composição que indica que os militares possam de alguma forma
serem os salvadores da pátria no Brasil. Existe uma ala dentro do militarismo,
um grupo, que admite condições políticas para isso. Desde o tenentismo da
década de 1922, acham que têm que lutar politicamente pela construção de um
Brasil, embora o tenentismo tivesse outra ideia, mas isso é um pensamento muito
comum, no século 20, entre os militares brasileiros. Eu não acho que há um
risco de uma nova ditadura civil militar, acho que existe risco é de o governo
Bolsonaro seguir e aprofundar seu delírio que diz ser
democrático. Isso é um risco muito claro: ele continuar e seguir a
tônica do desprezo pela vida das pessoas.
Indicação
de Leituras:
LOWY, M. O neofascista Bolsonaro diante da
pandemia. Blog da Boitempo, 2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/04/28/michael-lowy-o-neofascista-bolsonaro-diante-da-pandemia/
PY, Fábio. Pandemia cristofascista.
São Paulo: Recriar, 2020a.
PY,
Fábio. Bolsonaro’s Brazilian Christofascism during the Easter period plagued by Covid-19. International Journal of Latin American Religions,
v. 4, p.318-334, 2020b.
SCHMITT, C. Théologie politique.
Paris: Gallimard, 1988.
SOLLE, Dorothee. Beyond Mere Obedience: Reflections on a
Christian Ethic for the Future, Minneapolis:
Augsburg Publishing House, 1970.
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