Brasil Nazi
Paulo Sérgio Ribeiro
Iniciemos com uma breve
enumeração dos fatos:
- O slogan de campanha escolhido
por Jair Bolsonaro na corrida presidencial de 2018 foi "Brasil acima de
Tudo, Deus acima de Todos", uma evidente apropriação do “Alemanha acima de
todos” (Deutschland über alles), um dos
bordões de Adolf Hitler que chegaria a compor o hino nacional alemão
até ser dele suprimido nos estertores da Segunda Guerra Mundial;
- O hino das brigadas de
paraquedistas do Exército Brasileiro de cujas fileiras é oriundo o atual vice-presidente
da República, o general da reserva Hamilton Mourão, tem por inspiração a “Canção do Demônio” (SS marschiert in Feindesland), um hino que,
digamos, elevava o moral das tropas nazistas da Waffen SS[1];
Eis uma exibição do hino cantado
entusiasticamente por Mourão e seus pares na caserna:
Eis a melodia original:
- O então Secretário Especial de
Cultura do Governo Bolsonaro, o dramaturgo Roberto Alvim, plagiou trechos de um
discurso do ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, em
pronunciamento oficial. A repercussão negativa na Corte Suprema, no Parlamento
e nas redes sociais daquela emulação do nazismo culminou em sua exoneração da
pasta em janeiro de 2020[2].
- Em julho deste ano, Jair Bolsonaro
recebe em seu gabinete ninguém menos que Beatrix von Storch, membro do
Alternativa para a Alemanha (Alternative
für Deutschland, sigla AfD), partido da extrema direita de orientação
neonazista na Alemanha, e neta de Ludwig Schwerin von Krosigk, Ministro das
Finanças do Terceiro Reich[3].
Não me impus rigor na cronologia
dos fatos, pois cada um deles já seria em si motivo suficiente para
encararmos com coragem e lucidez a presença de símbolos e valores que, em
território nacional, servem à apologia de um regime totalitário que escreveu a
página mais sombria da história do século XX: o holocausto.
Por que falar disso? Será que não
poderia ter abordado um assunto menos bad
vibes para os nossos 13 leitores?
Em 2004, ano em que nos
distraíamos de tão “felizes” ou, melhor dizendo, éramos felizes por estarmos demasiado
distraídos no início da Era Lula, Jair Bolsonaro, então deputado federal pelo
extinto Partido da Frente Liberal (PFL), já era um ícone para grupos
neonazistas[4].
Adriana Dias, antropóloga que pesquisa há quase duas décadas a atuação desses
grupos no Brasil, encontrou de uma maneira um tanto aleatória (um verdadeiro
achado) a seguinte comunicação no extenso material etnográfico de que dispõe:
A carta acima, publicada por pelo menos três dentre as dezenas de sites neonazistas em língua portuguesa já identificados por Dias, não nos permite inferir que Bolsonaro a tenha remetido ao Econac, mas nos leva a indagar, como o faz a pesquisadora, por que tal carta não foi encontrada em nenhum outro lugar para além do ambiente neonazi na Internet[5] e, não menos importante, por que o então deputado federal não denunciou tais grupos ou sequer impediu a veiculação de sua comunicação oficial pelos mesmos, já que a divulgação do nazismo é uma qualificadora do crime de racismo no país (Lei nº 7.716/1989, Art. 20, §§ 1º e 2º).
Considerando que o tumulto na sucessão
eleitoral que se aproxima é um expediente do qual o (ainda) presidente da
República é useiro e vezeiro e, pior, que uma parcela de sua base eleitoral tem na violência política um moto próprio para vingar-se
de um capitalismo periférico contra o qual estão impedidos de vislumbrar
alternativas de superação histórica pelo próprio caráter pré-político do seu
comportamento – que a engenharia social do bolsonarismo induz e reforça – , é fortuito que reconheçamos não apenas o quão suscetível somos a um regime nazista – mesmo que brasileiros tenham sido recrutados para se integrar aos Aliados contra as forças do Eixo na Segunda Guerra Mundial –, mas como o extermínio
em massa na Alemanha de Hitler e no Brasil de Bolsonaro é um desdobramento
funesto da não elaboração do passado.
Em “Educação e Emancipação”[6],
Theodor W. Adorno se volta a essa questão-chave para o nosso destino comum. Refutando
o chavão pelo qual a questão se pôs na Alemanha do pós-guerra – equacioná-la
como se possível fosse riscar da memória o Terceiro Reich – Adorno nos lembra
que o “nazismo sobrevive” enquanto não soubermos se os seus horrores são
invulneráveis à própria morte ou se a disposição violenta para retornar ao “indizível”
permanece latente nos homens e nas condições que os cercam.
“Não inventei o racismo”, “Não
sou genocida”, “Anulei o voto no 2º turno, pois não me vi representado por Haddad
(um democrata inconteste) nem por Bolsonaro (um defensor convicto da ditadura)”,
“Era uma escolha difícil” são modos inconscientes
ou nem tanto assim de recusar a culpa pela Auschwitz tropical que se sucedeu com a chegada da extrema direita ao Executivo federal. Noutros termos, de não
elaborar o passado, mas de ser dirigido por ele. Assim foi com a escravidão, assim
o é com a ditadura civil-militar e, talvez, assim será com a pandemia do novo
coronavírus. Quanto à última, valho-me uma vez mais do ensinamento do teórico
frankfurtiano: o ato de esquecer e de perdoar é exclusivo de quem sofre a
injustiça, mas bem pode ser imposto pelos partidários daqueles que a praticaram
ou que a endossaram com indiferença passiva.
O desejo de libertar-se do passado justifica-se: não é possível viver à
sua sombra e o terror não tem fim quando culpa e violência precisam ser pagas
com culpa e violência; e não se justifica porque o passado de que se quer
escapar ainda permanece muito vivo (ADORNO, 2006, p.29).
O leitor apressado pode deduzir da passagem acima uma exortação do pacifismo. Muito pelo contrário, ela apenas nos diz que os brasileiros mortos nesta pandemia deverão ser vingados para que possamos merecer o seu esquecimento.
[1] Jornal GGN.
Canção do Dragão, hino militar dos paraquedistas brasileiros, uma tradução de
um hino da SS. Edição de 29/09/2017. Disponível aqui.
[2] El País.
Secretário da Cultura de Bolsonaro imita fala de nazista Goebbels e é demitido.
Edição de 17/01/2020. Disponível aqui.
[3] Congresso em
Foco. Bolsonaro posa para foto com neta de antigo ministro de Hitler.
Edição de 26/07/2021. Disponível aqui.
[4] Carta Campinas.
Pesquisadora descobre prova que mostra relação de Bolsonaro com nazistas.
Edição de 28/07/2021. Disponível aqui.
[5] The Intercept
Brasil. Pesquisadora encontra carta de Bolsonaro publicada em sites
neonazistas publicada em sites neonazistas em 2004. Edição de 28/07/2021.
Disponível aqui.
[6] Cf. ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006 (4ª
edição).
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