sábado, 31 de julho de 2021

Brasil Nazi



Brasil Nazi

Paulo Sérgio Ribeiro

Iniciemos com uma breve enumeração dos fatos:

- O slogan de campanha escolhido por Jair Bolsonaro na corrida presidencial de 2018 foi "Brasil acima de Tudo, Deus acima de Todos", uma evidente apropriação do “Alemanha acima de todos” (Deutschland über alles), um dos bordões de Adolf Hitler que chegaria a compor o hino nacional alemão até ser dele suprimido nos estertores da Segunda Guerra Mundial;

- O hino das brigadas de paraquedistas do Exército Brasileiro de cujas fileiras é oriundo o atual vice-presidente da República, o general da reserva Hamilton Mourão, tem por inspiração a “Canção do Demônio” (SS marschiert in Feindesland), um hino que, digamos, elevava o moral das tropas nazistas da Waffen SS[1];

Eis uma exibição do hino cantado entusiasticamente por Mourão e seus pares na caserna:

Eis a melodia original:

- O então Secretário Especial de Cultura do Governo Bolsonaro, o dramaturgo Roberto Alvim, plagiou trechos de um discurso do ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, em pronunciamento oficial. A repercussão negativa na Corte Suprema, no Parlamento e nas redes sociais daquela emulação do nazismo culminou em sua exoneração da pasta em janeiro de 2020[2].

- Em julho deste ano, Jair Bolsonaro recebe em seu gabinete ninguém menos que Beatrix von Storch, membro do Alternativa para a Alemanha (Alternative für Deutschland, sigla AfD), partido da extrema direita de orientação neonazista na Alemanha, e neta de Ludwig Schwerin von Krosigk, Ministro das Finanças do Terceiro Reich[3].

Não me impus rigor na cronologia dos fatos, pois cada um deles já seria em si motivo suficiente para encararmos com coragem e lucidez a presença de símbolos e valores que, em território nacional, servem à apologia de um regime totalitário que escreveu a página mais sombria da história do século XX: o holocausto.

Por que falar disso? Será que não poderia ter abordado um assunto menos bad vibes para os nossos 13 leitores?  

Em 2004, ano em que nos distraíamos de tão “felizes” ou, melhor dizendo, éramos felizes por estarmos demasiado distraídos no início da Era Lula, Jair Bolsonaro, então deputado federal pelo extinto Partido da Frente Liberal (PFL), já era um ícone para grupos neonazistas[4]. Adriana Dias, antropóloga que pesquisa há quase duas décadas a atuação desses grupos no Brasil, encontrou de uma maneira um tanto aleatória (um verdadeiro achado) a seguinte comunicação no extenso material etnográfico de que dispõe:

 


A carta acima, publicada por pelo menos três dentre as dezenas de sites neonazistas em língua portuguesa já identificados por Dias, não nos permite inferir que Bolsonaro a tenha remetido ao Econac, mas nos leva a indagar, como o faz a pesquisadora, por que tal carta não foi encontrada em nenhum outro lugar para além do ambiente neonazi na Internet[5] e, não menos importante, por que o então deputado federal não denunciou tais grupos ou sequer impediu a veiculação de sua comunicação oficial pelos mesmos, já que a divulgação do nazismo é uma qualificadora do crime de racismo no país (Lei nº 7.716/1989, Art. 20, §§ 1º e 2º).

Considerando que o tumulto na sucessão eleitoral que se aproxima é um expediente do qual o (ainda) presidente da República é useiro e vezeiro e, pior, que uma parcela de sua base eleitoral tem na violência política um moto próprio para vingar-se de um capitalismo periférico contra o qual estão impedidos de vislumbrar alternativas de superação histórica pelo próprio caráter pré-político do seu comportamento – que a engenharia social do bolsonarismo induz e reforça – , é fortuito que reconheçamos não apenas o quão suscetível somos a um regime nazista – mesmo que brasileiros tenham sido recrutados para se integrar aos Aliados contra as forças do Eixo na Segunda Guerra Mundial –, mas como o extermínio em massa na Alemanha de Hitler e no Brasil de Bolsonaro é um desdobramento funesto da não elaboração do passado.

Em “Educação e Emancipação”[6], Theodor W. Adorno se volta a essa questão-chave para o nosso destino comum. Refutando o chavão pelo qual a questão se pôs na Alemanha do pós-guerra – equacioná-la como se possível fosse riscar da memória o Terceiro Reich – Adorno nos lembra que o “nazismo sobrevive” enquanto não soubermos se os seus horrores são invulneráveis à própria morte ou se a disposição violenta para retornar ao “indizível” permanece latente nos homens e nas condições que os cercam.

“Não inventei o racismo”, “Não sou genocida”, “Anulei o voto no 2º turno, pois não me vi representado por Haddad (um democrata inconteste) nem por Bolsonaro (um defensor convicto da ditadura)”, “Era uma escolha difícil” são modos inconscientes ou nem tanto assim de recusar a culpa pela Auschwitz tropical que se sucedeu com a chegada da extrema direita ao Executivo federal. Noutros termos, de não elaborar o passado, mas de ser dirigido por ele. Assim foi com a escravidão, assim o é com a ditadura civil-militar e, talvez, assim será com a pandemia do novo coronavírus. Quanto à última, valho-me uma vez mais do ensinamento do teórico frankfurtiano: o ato de esquecer e de perdoar é exclusivo de quem sofre a injustiça, mas bem pode ser imposto pelos partidários daqueles que a praticaram ou que a endossaram com indiferença passiva.

O desejo de libertar-se do passado justifica-se: não é possível viver à sua sombra e o terror não tem fim quando culpa e violência precisam ser pagas com culpa e violência; e não se justifica porque o passado de que se quer escapar ainda permanece muito vivo (ADORNO, 2006, p.29).

O leitor apressado pode deduzir da passagem acima uma exortação do pacifismo. Muito pelo contrário, ela apenas nos diz que os brasileiros mortos nesta pandemia deverão ser vingados para que possamos merecer o seu esquecimento.



[1] Jornal GGN. Canção do Dragão, hino militar dos paraquedistas brasileiros, uma tradução de um hino da SS. Edição de 29/09/2017. Disponível aqui.

[2] El País. Secretário da Cultura de Bolsonaro imita fala de nazista Goebbels e é demitido. Edição de 17/01/2020. Disponível aqui.

[3] Congresso em Foco. Bolsonaro posa para foto com neta de antigo ministro de Hitler. Edição de 26/07/2021. Disponível aqui.

[4] Carta Campinas. Pesquisadora descobre prova que mostra relação de Bolsonaro com nazistas. Edição de 28/07/2021. Disponível aqui.

[5] The Intercept Brasil. Pesquisadora encontra carta de Bolsonaro publicada em sites neonazistas publicada em sites neonazistas em 2004. Edição de 28/07/2021. Disponível aqui.

[6] Cf. ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006 (4ª edição).

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