quinta-feira, 13 de maio de 2021

Genocídio, por quê?

Fonte: Greenpeace.


Genocídio, por quê?                                                                    

Paulo Sérgio Ribeiro

A palavra ganhou foro próprio: genocídio. Sua popularização vai ao encontro da denúncia de um governo cujos próceres flertaram há mais de um ano com a possibilidade concreta de uma morte em massa, a qual, mesmo descontada a subnotificação dos números da Covid-19, é simplesmente inaceitável. A urgência que a pandemia acarreta deve ser, pois, um estímulo para nos apropriarmos do genocídio como categoria de análise.

Não condeno o uso da palavra “genocídio” ante o acirramento dos embates cotidianos com os “negacionistas” de plantão, mas defendo que a delimitação do conceito, se levada a efeito, garante-nos um contraponto terapêutico aos delírios reacionários da malta “verde-amarela” que ainda constrange o país[1] e um acerto de contas com os liberais conservadores que, amalgamados com a primeira em outubro de 2018[2], normalizavam o prenúncio da tragédia que nos abateria.

De pronto, uma indagação: tragédia ou crime?                                        

Se longe estamos de uma perspectiva ex post facto da pandemia de Covid-19 no cenário brasileiro, passado mais de um ano do alerta mundial da Organização Mundial de Saúde (OMS)[3], já podemos focalizar - tal como o fez Maria Mano, Nara Ramos e Amarildo Trevisan - o “momento da tragédia”[4]. Apoiando-se na literatura sobre desastres, tais autores expõem os limites factuais da distinção entre fatores naturais e os propriamente humanos de uma tragédia ou, em seus próprios termos, sugere que observemos não apenas “para os processos que desencadeiam, tampouco para os processos que derivam de uma catástrofe”[5], mas também para o “entremeio das fibras que a compõem, que a mantém, que a fazem ser mais cruel”[6].

Há uma zona nebulosa a separar o inesperado do previsível quando abordamos a pandemia de Covid-19 sob o signo da tragédia. Atravessá-la sem nos perder requereria contrabalançar “acaso” e “vulnerabilidade” em relação a contextos específicos. Em “Os semblantes conhecidos”[7], Carlos Valpassos descreveu (com a mão talentosa de etnógrafo que só ele tem) a progressão da pandemia no Brasil, evidenciando a ausência de uma tomada de providências do Governo Federal que poderia ter sido facilitada pela relativa “vantagem” que o país inicialmente possuía, dado o foco originário da Covid-19 localizar-se na Ásia.

As visões espontâneas da pandemia como um imponderável do mundo natural nada nos dizem sobre a exposição sistemática de pessoas a situações de vulnerabilidade e os impactos diferenciados que eventos adversos – epidemias, terremotos, furacões, secas prolongadas etc. – têm em suas populações. Ora, a própria pandemia da Covid-19 não poderia ser classificada como um desastre ou catástrofe “natural”, caso levemos a sério a correlação, apontada por Allan Silva[8], entre a propagação dessa doença e a criação intensiva de animais em escala industrial.

A pecuária industrial que tomou forma nos Estados Unidos dos anos 1940 se difundiu como o paradigma da produção animal a leste e a oeste do Meridiano de Greenwich. Seu principal atributo de eficiência – o melhoramento genético – encontraria, na promessa civilizatória de eliminação da insegurança alimentar crônica entre os povos, a primazia de um argumento que pareceria resistir ao desgaste do tempo. Contudo, no terreno dos fatos, tal promessa nunca foi cumprida e, provavelmente, foi (e é) tão somente mais um ardil da ideologia da modernização capitalista. Tomando por referência a obra do biólogo evolucionista Rob Wallace[9], Allan Silva nos lembra que a revolução agropecuária do século XX condicionou a criação de animais para consumo ao “monocultivo genético”, que, para o geógrafo, trata-se de uma verdadeira “bomba-relógio microbiológica”.

Se, por um lado, a Covid-19 ainda não teve sua origem confirmada em pesquisas, por outro, o confinamento de animais para consumo marcada pela uniformização genética configura a antessala de novas epidemias cujo potencial destrutivo se mostra inaudito:

 

O enfileiramento de milhares de animais geneticamente similares nos galpões do agronegócio também funciona como uma plataforma de testes para o transbordamento de doenças zoonóticas para as populações humanas. A qualquer momento uma cepa recém–emergente de um coronavírus ou influenza pode assumir um rearranjo genético capaz de infectar humanos – geralmente um trabalhador do agronegócio –, e pronto: está aberta a longa rampa de mais uma epidemia mortal[10].


Se no meio ambiente que ainda possamos chamar de “natural” e nos antigos modelos de criação ao ar livre de animais, a biodiversidade nos assegurava uma “barreira epidemiológica”, o vertiginoso avanço da fronteira agrícola sobre o Pantanal e a Floresta Amazônica chancelado pelo Governo Bolsonaro promove uma interface perigosa entre a fauna (com todos os patógenos conhecidos ou não que contiver) e os complexos agroindustriais:

 

No Pantanal, a criação de aves, a pecuária bovina e a produção intensiva de soja, milho e cana-de-açúcar avançam pari passu com a drenagem das áreas úmidas. A região pan–amazônica é o outro bioma sob profunda ameaça sanitária, já que se trata, com toda a probabilidade, do maior repositório de coronavírus do planeta. A ecologia da Amazônia, profundamente complexa, contém cascatas de controle epidemiológico que os cientistas com muito esforço começaram a desvendar. Vale lembrar que a destruição das florestas tropicais africanas e a pressão do agronegócio do óleo de palma produziu a maior epidemia de ebola da história, que levou 11 mil pessoas à morte entre 2013 e 2015[11]


Em resumo, postular a pandemia de Covid-19 como “a tragédia que ninguém poderia prever” é, errônea e cretinamente, atribuir à natureza uma alteridade absoluta, conferindo às sociedades humanas um salvo-conduto àquilo que dela se fez na esteira da civilização urbano-industrial. Se, como aponta Allan Silva (op. cit.), além das grandes unidades de produção do agronegócio – sobretudo, frigoríficos -, um dos percursos da “interiorização” da Covid-19 no país se desenha nas pistas de pouso para o garimpo ilegal em territórios indígenas, a questão do genocídio pode ser devolvida ao debate público sem um olhar autoindulgente para o “ser-espécie” que somos.

Se estamos diante de algo para além de uma tragédia, trata-se de um crime de genocídio?

O termo genocídio foi cunhado por Raphael Lemkin em 1944, consistindo em um “plano de desintegração política e social de determinados grupos em sociedade” (LEMKIN apud. VERGNE & VILHENA & ZAMORA & ROSA). Em acordo com o conceito elaborado pelo advogado polonês - que perdeu nada menos do que 49 membros de sua família (incluindo pai e mãe) em Treblinka, um dos campos de extermínio alemão onde judeus eram executados em câmaras de gás na Segunda Guerra Mundial -, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabelece em 1948 a Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio e, em 1952, o Brasil a promulga por meio do Decreto nº 30.822/1952, ratificando as hipóteses de genocídio em seu Art. 2º:

 

Na presente Convenção entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:

a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

 

O julgamento de tal crime ocorrerá no tribunal competente no Estado onde tiver sido praticado ou na Corte Penal Internacional competente, se reconhecida sua jurisdição pelas “partes contratantes”. Passados quase 70 anos do acolhimento dessa Convenção em nosso ordenamento jurídico, o Superior Tribunal Federal (STF) deverá julgar notícia-crime contra o Presidente da República, Jair Bolsonaro, por suposto genocídio, por publicar a Mensagem nº 378 que veta parcialmente a Lei nº 14.021/2020 – que dispõe sobre a proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas entre outras medidas. Eis o que aquela Mensagem nega aos povos indígenas, comunidades quilombolas, pescadores artesanais e demais comunidades e povos tradicionais: 


§  acesso universal à água potável;

§  distribuição gratuita de materiais de higiene, de limpeza e de desinfecção de superfícies para aldeias ou comunidades indígenas, oficialmente reconhecidas ou não, inclusive no contexto urbano;

§  oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidade de terapia intensiva (UTI);

§  aquisição ou disponibilização de ventiladores e de máquinas de oxigenação sanguínea;

§  elaboração e distribuição, com participação dos povos indígenas ou de suas instituições, de materiais informativos sobre os sintomas da Covid-19, em formatos diversos e por meio de rádios comunitárias e de redes sociais, com tradução e em linguagem acessível, respeitada a diversidade linguística dos povos indígenas, em quantidade que atenda às aldeias ou comunidades indígenas de todo o País;

§  provimento de pontos de internet nas aldeias ou comunidades, a fim de viabilizar o acesso à informação e de evitar o deslocamento de indígenas para os centros urbanos;

§  distribuição de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas diretamente às famílias indígenas, quilombolas, de pescadores artesanais e dos demais povos e comunidades tradicionais, conforme a necessidade dos assistidos;

§  inclusão das comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares como beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA);

§  planos de contingência para situações de contato para cada registro confirmado de indígenas isolados oficialmente reconhecido pela Funai;

§  planos de contingência para surtos e epidemias específicos para cada povo de recente contato oficialmente reconhecido pela Funai;

§  mecanismos que facilitem o acesso ao auxílio emergencial instituído pelo art. 2º da Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020, assim como aos benefícios sociais e previdenciários, de modo a possibilitar a permanência de povos indígenas, de comunidades quilombolas, de pescadores artesanais e de demais povos e comunidades tradicionais em suas próprias comunidades. 

A longa lista de omissões, por extenuante que seja, não assegura que o desfecho da notícia-crime seja favorável àqueles grupos vulneráveis, uma vez que passa pela Procuradoria Geral da República cujo titular, Augusto Aras, já manifestou-se favorável ao arquivamento[12].

O autor da referida notícia-crime, André Barros, representado pelo também advogado Luís Maximiliano Telesca, compreende que tal denúncia não se refere apenas à ameaça aos povos indígenas e às demais comunidades tradicionais, mas às ações do Governo Bolsonaro em seu conjunto[13], haja vista o estímulo deliberado ao não-isolamento da população brasileira que, por sua vez, teve na duvidosa “imunidade de rebanho” o fio condutor de uma estratégia sanitária permanente, conforme avalia Deisy Ventura, coordenadora de uma pesquisa empírica de fôlego sobre as normas federais e estaduais relativas ao novo coronavírus[14].

No último 19 de abril, data emblemática para a luta por reconhecimento dos povos originários, contávamos 1038 índios mortos e mais de 52 mil contaminados por Covid-19, segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)[15]. Dado o sombrio histórico de massacres de povos inteiros por motivações étnicas somente no século XX, voltar os olhos para este grupo social nos dá uma medida dos efeitos deletérios da “frente neocolonial” aberta pelo Governo Bolsonaro.  

Segundo Guilherme Mello[16], o bolsonarismo emerge como um polo organizador da política nacional que galvaniza o antipetismo sem, todavia, ser redutível a ele, pois destrona com igual vigor parte da centro-direita tradicional, assumindo, pois, o caráter de uma força antissistema que encarna uma nova “tese” a desafiar contendores no campo institucional e a eliminar “inimigos” no campo extra institucional. Sendo assim, o garimpo ilegal em territórios indígenas é a face mais brutal de uma frente neocolonial que sucedeu a frente neodesenvolvimentista ensaiada nos Governos Lula e Dilma. Para Mello, surge um novo equilíbrio de poder na classe dominante brasileira que, no Governo Bolsonaro, passa a ter uma agenda para chamar de sua com a seguinte conjunção de fatores:

a) o declínio da indústria de transformação vis à vis o fortalecimento da burguesia comercial – que abraça o projeto neoliberal consumado na reforma trabalhista;

b) o desembarque do setor financeiro da frente neodesenvolvimentista, posto que nunca enxergou no programa petista um “fiador” dos seus interesses de longo prazo;

c) o “libera geral” do agronegócio com o desmonte dos órgãos regulatórios do setor;

d) a crise do setor extrativista de grande escala deflagrada na Petrobrás (acossada por escândalos de corrupção novelizados pela mídia corporativa) e na Vale do Rio Doce (os desastres anunciados em Mariana e Brumadinho), dando margem à maior atuação dos capitalistas ligados ao extrativismo primitivo (grileiros, posseiros, madeireiros e garimpeiros).

A expansão dos negócios daqueles que Mello denomina de “pequenos capitalistas”, correspondentes à alínea “d”, em territórios indígenas e áreas de proteção ambiental são um saque irremissível ao futuro que poderíamos compartilhar com os povos originários. A mineração ilegal é uma atividade que agrega centenas ou até milhares de homens das mais variadas procedências que, em um território indígena, pode resultar em dizimação por serem vetores de uma doença mortal como a Covid-19. As informações do sistema Deter, administrado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) – confirmam que “72% de todo o garimpo realizado na Amazônia – entre janeiro e abril de 2020 – ocorreu dentro dessas áreas – que deveriam ser – ‘protegidas’”[17].

A julgar pela atualidade do conceito de genocídio que um sobrevivente do holocausto nos legou e pela pertinência da hipótese legal de genocídio concernente a “submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial, sim, não resta dúvida de que o Brasil é o palco de uma “Auschwitz tropical”.

Sim, eu sei, há uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apura as macabras escolhas do Governo Bolsonaro sob a pandemia do novo coronavírus, como também sei que corpos pretos foram massacrados pela polícia civil fluminense na comunidade do Jacarezinho qual uma operação de rotina de soldados nazistas no “Gueto de Varsóvia”.

O que me deixa em dúvida é até onde vai nossa cumplicidade com o colonialismo em relação ao genocídio indígena e até onde nos deixaremos levar pela ilusão de que a guerra aos pobres não nos destrói como a nação que um dia poderíamos ter sido.



[1] Jornal Estadão. Bolsonaristas fazem atos presenciais de 1º de Maio; críticos se manifestam nas redes sociais. Edição de 01/05/2021. Disponível aqui.

[2] Submersos nesta crise sanitária e, mesmo sugerindo a corrida presidencial de três anos atrás como um marcador importante da cronologia que se queira fazer deles, importa compreender como as condições subjetivas daquele resultado eleitoral podem ou não prevalecer na construção da memória social da pandemia no país.

[3] Jornal Estadão. Do H1N1 ao coronavírus: as 6 vezes em que a OMS decretou emergência global de saúde pública. Edição de 31/01/2020. Disponível aqui.

[4] MANO, Maria Amélia Medeiros; RAMOS, Nara Vieira; TREVISAN, Amarildo Luiz. O momento da tragédia: o papel da educação e da saúde na perspectiva da justiça social. Avaliação (Campinas),  Sorocaba ,  v. 24, n. 2, p. 545-565,  out.  2019 .   Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-40772019000200545&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  20  abr.  2021.  Epub 26-Set-2019.  http://dx.doi.org/10.1590/s1414-40772019000200013.

[5] Op. cit., p. 546.

[6] Idem.

[7] Jornal Folha da Manhã. Os semblantes conhecidos. Edição de 13/06/2020; republicado em nosso blog em 20/06/2020. Disponível aqui.

[8] Le Monde Diplomatique Brasil. A pandemia e o agronegócio no Brasil. Edição nº 162, de 28/12/2020. Disponível aqui.

[9] Cf. WALLACE, Rob. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Editora Elefante e Igrá Kniga, 2020.

[10] Le Monde Diplomatique Brasil. A pandemia e o agronegócio no Brasil. Edição nº 162, de 28/12/2020. Disponível aqui.

[11] Idem.

[12] Rede Brasil Atual. Cármen Lúcia pede investigação contra Bolsonaro por genocídio. Edição de 13/04/2021. Disponível aqui.

[13] Idem.

[14] Jornal El País. Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”. Edição de 21/01/2021. Disponível aqui.

[15] Portal G1. No Dia do Índio, projeções no Congresso Nacional lembram indígenas mortos pela Covid-19. Edição de 19/04/2021. Disponível aqui.

[16] Le Monde Diplomatique Brasil. A frente neocolonial. Edição nº 163, de 01/02/2021. Disponível aqui.

[17] Greenpeace Brasil. Em meio à Covid, 72% do garimpo na Amazônia foi em áreas “protegidas”. Edição de 25/06/2020. Disponível aqui.

Nenhum comentário:

Postar um comentário