quinta-feira, 6 de maio de 2021

Notas sobre o ataque terrorista em Saudades (Santa Catarina)

Imagem: Reprodução/Record TV

Por Leonardo Sacramento*

Em 2019, após o ataque terrorista em uma escola de Suzano, fui convidado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, campus Sertãozinho, onde trabalho como pedagogo, a palestrar sobre o que a escola poderia fazer para evitar um eventual atentado. Na época, professores e diretores ficaram compreensivelmente preocupados.

Abordei que, dos poucos estudos existentes, principalmente nos EUA, ataques a escolas possui pouca relação com o batido bullying. Que, na compreensão da academia norte-americana, há um consenso de uns bons anos que vinculam os ataques a acesso a armas, deep web e grupos supremacistas terroristas. Tais estudos e o recrudescimento dos ataques promoveram uma reformulação na política interna norte-americana, fazendo com que algumas instituições investigativas e repressivas daquele país passassem a classificar esses atos como “terrorismo doméstico”, ou “terrorismo supremacista”.

Abordei que em todos os casos são homens, geralmente antifeministas e até antimulheres (incels, ou celibatários voluntários), desgostosos da quebra de expectativa entre o que prometeram (consumo) e a realidade (trabalho precarizado). Culpam o lesbianismo pela falta de mulheres em suas vidas. Daí a lesbofobia misturada com misoginia. Culpam negros e imigrantes pela falta de trabalho, ou pelo trabalho pior do que o trabalho que seus pais tiveram. Por isso, são supremacistas. Discorri sobre a incrível coincidência dos terroristas de Suzano serem homens e brancos e os atacados serem, em sua maioria, mulheres e negros – um, inclusive, foi a pé ao hospital com um machado no corpo.

Parte dos professores discordou, apesar do consenso acadêmico norte-americano. Procurou psicologizar os terroristas. Não sou contrário em entendê-los utilizando-se dessa epistemologia, pelo contrário, mas a psicologização desvinculada de outras epistemologias (sociologia, economia, antropologia e afins) para esses casos vem de uma classe média que percebe que é um tipo de crime mais próximo dela, inclusive entre os praticantes, o que faz com que ela tenha mais alteridade com o terrorista, procurando compreendê-lo sob a lógica do “surto”, mesmo que se demonstre o planejamento para o ataque. Em certo sentido, segmentos da nossa sociedade psicologizam e patologizam esses ataques terroristas porque acham perfeitamente factível atacar o outro que os destratou; porque, no fundo da alma, já pensaram nisso quando foram alvo de ataques pessoais na juventude. Já sentiram essa raiva e pensaram em reagir. Algumas vezes reagiram, de forma controlada, em uma briga no portão da escola. Em outras, não.

Há inúmeros filmes que trabalham com essa expectativa, como John Wick (vingança pela morte de um cachorro dado pela esposa falecida) e o novo Nobody (vingança de um chefe de família por não ter reagido a um assalto). Se puxar pela memória, perceberá que os filmes de ação por vingança trabalham com a reação justa, ou tratada como justa. No caso dos dois filmes, era apenas um cachorro e o assalto não produziu nenhum ferido ou morto – mas foi zombado pelos vizinhos e policiais por não ter reagido.  Há outros filmes que realizam uma crítica a essa expectativa, como Taxi Driver, inclusive relacionando-a com o campo conservador e reacionário. Alguns filmes, com erros cruciais (ou acertos), como a mudança do personagem principal do Mathias para o Capitão Nascimento em Tropa de Elite, podem facilmente se transformar em uma peça fascista, para o deleite de parte da classe média mais reacionária.

Lógico, esse tipo de ataque, com a suposta motivação de reação, faz com que setores da classe média tenham mais alteridade do que com um jovem da periferia que roubou um tênis, pois, geralmente, conseguiram o tênis quando desejou. Há uma hierarquia da alteridade. Bom, o fato é que a atividade no Instituto Federal teve até aula de como se defender de supostos ataques. Fui embora.

Duas semanas depois do ataque de Suzano, houve um ataque debelado no Instituto Federal do Paraná, no campus Palmas, por meio da Operação No Limite,[i] da Polícia Civil.[ii] Cinco dias depois houve outra operação da Polícia Federal no Instituto Federal Farroupilha,[iii] identificando um grupo de estudantes que planejava um ataque contra estudantes e professores. Mas o mês de março de 2019, segundo a concepção psicologizante, teria sido apenas um mês com alto índice de bullying. Coincidências (sic). Em 2017, houve o ataque a uma creche por um fundamentalista cristão em Janaúba, Minas Gerais. É, não vale somente para os islâmicos. Inclusive, hoje há mais terroristas supremacistas e cristãos presos no Ocidente do que islâmicos, mesmo com a “Guerra ao Terror” e Guantánamo. Sim, meu bom amigo cristão, os EUA viraram a chave faz um tempo. Podem até ter a retórica da guerra externa, porque é um país imperialista, com bases e ações no globo, mas perceberam que há um inimigo interno, como se mostrou na invasão do Capitólio. Aliás, a defesa de Trump do atropelamento de antifascistas em Charlottesville (Virgínia, EUA) por um supremacista, matando uma mulher, era um ponto em comum entre o republicano e os grupos supremacistas nos fóruns da deep web.

Assim que ocorreu o ataque em Saudades, a mídia, que possui posição parecida com parte dos professores da atividade citada, evidenciou uma suposta relação entre ataques e bullying. O Jornal Nacional na edição de 05 de maio de 2021 chamou “o jovem” de “agressor”. Um assombro. Um homem sofre bullying e mata bebês. Qual a relação? Por que não matou os supostos agressores em sua escola? Qual seria a intensidade do bullying para que o induzisse a matar bebês? Não sei. A lógica é: se sofreu bullying, pode-se fazer qualquer coisa, sem qualquer parâmetro racional, porque o humano, especialmente se for branco, pode supostamente perder o controle e fazer coisas sem racionalidade. Rico não rouba, é cleptomaníaco; afinal, que motivação teria um rico para roubar? Perceba que esse discurso não é universal, mas apenas para aqueles crimes que um segmento da sociedade possui alteridade. Para os que não possui alteridade, ficam a cadeia, a polícia e o “bandido bom é bandido morto”.

Nesse ano, Guilherme Alves Costa matou uma garota gamer. Planejou o crime por duas semanas e escreveu um livro, que roda na deep web. Em mensagem de email ele disse: “eu vivo pensando no quanto eu odeio a humanidade. Sinceramente, nesses últimos anos andei me abalando com minha namorada Eduarda, ela não me compreendia, eu peguei um ódio forte pelas mulheres nesses últimos anos da minha vida, todo esse drama que elas passam, toda essa melancolia, eu sinto nojo e ódio disso, eu quero ficar longe, ser um homem seguro e esperto”. Depois afirmou que o Crazychan, um fórum anônimo (deep web), o ajudou: “Lá fiz amizades, meus amigos me apoiaram, um grande líder, Lucy, me apoiou, me mostrou o caminho, que eu deveria seguir, fui trabalhando até comprar minha 9mm”.[iv] Alguma notícia da prisão de Lucy?

No seguro Canadá, em março deste ano, um terrorista atropelou um grupo de pessoas com uma van e matou dez. Pouco antes do ataque, ele escreveu no Facebook: “A rebelião incel começou”. A referência é para o norte-americano Elliot Rodger, que realizou um ataque terrorista em 2014. O advogado do canadense alegou “autismo”. A juíza não aceitou, com fortes críticas de organizações e entidades em defesa de pessoas com espectro autista. Canadá está mais escaldado do que o Brasil. 

É plausível matar bebês na deep web? Garanto que é. Há eugenistas, supremacistas, atividades de contrainformação, indução a ataques, de tudo. Hoje, há notícias de fóruns anônimos reivindicando o ataque às professoras e aos bebês, um, inclusive, que se refere a Kipper como “nosso mais novo herói nacional”.  O fórum espera “que alcance o paraíso”, pois “Death seu mentor lhe instruiu o caminho certo”.[v] Pode ser mera reinvindicação depois do ataque terrorista. Pode ser que não...

Mesmo que seja mero oportunismo, ataques como o da creche servem de aglutinação de jovens misóginos e supremacistas na deep web. E estão servindo. O símbolo de ok (Poder Branco – White Power) do assessor de Bolsonaro em atividade do Senado, reproduzindo o símbolo feito pelo terrorista responsável pelo ataque em uma mesquita na Nova Zelândia, transmitido como se fosse um jogo de vídeo game, serve ou acaba por servir ao mesmo fim, dando a entender que os grupos estão representados no governo federal (e estão).

Mas a mídia está seguindo o caminho que sempre seguiu. A Polícia também (e não há como cobrar, pois é uma polícia investigativa de uma cidade pequena que não há roubos e furtos, segundo o próprio delegado). Qual caminho o país continua a seguir? O caminho da refutação à palestra que ministrei. Foi bullying, com alguma patologia e uma pitada de esquizofrenia. A relação dos bebês e das professoras de educação infantil com o bullying ao terrorista provavelmente continuará sendo aquele tipo de mistério que uma sociedade faz questão de não desvendar.


* Leonardo Sacramento é doutor em Educação, professor de ensino fundamental da Rede Municipal de Ribeirão Preto e pedagogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, campus Sertãozinho. Presidente da APROFERP (Associação dos Profissionais de Ensino de Ribeirão Preto/SP). Autor do livro A universidade mercantil: um estudo sobre a universidade pública e o capital privado (Editora Appris).



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