Foto de publicação nas redes sociais de Fábio Porchat em 03/05/2019. (Os rostos foram encobertos para preservar a privacidade das crianças). |
*Jefferson Nascimento
Esse texto
repercute os dados e as análises do artigo “O que se faz com uma caneta BIC? A agenda legislativa e administrativa do governo Bolsonaro (2019-2022)”,
publicado em 20 de maio deste ano, por Vinícius Lino, Bhreno Vieira e Dalson
Figueiredo, no Blog Gestão, Política e Sociedade dos Cadernos de Gestão Pública e Cidadania, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Os autores
evidenciam que, dentre as Proposições Legislativas, as temáticas mais
recorrentes de autoria do governo Bolsonaro/Guedes foram: Macroeconomia (15%), Pandemia (14%), Administração Pública e
Governo (12%), Regulação e Serviços (11%), Trabalho e Emprego (10%) e
Tributação (8%). Excetuando as medidas relacionadas à pandemia de Covid-19,
cujo caráter era emergencial, 56% das proposições legislativas estavam
relacionadas à economia e administração pública. Quando se tratou de Pandemia,
Trabalho e Emprego e Suporte aos setores econômicos, as Medidas Provisórias eram
mais utilizadas que Projetos de Leis.
Os decretos
presidenciais de Bolsonaro foram editados com mais frequência nos seguintes temas: Administração
Pública e governo (25%), Burocracia (18%), Política e Comércio Exterior (12%),
Defesa (9%), Transportes (9%) e Tributação (6%). Por esse instrumento, excetuando
Defesa, 70% de todos os decretos estavam relacionados aos aspectos econômicos,
incluindo política externa, e administração pública.
Os autores identificam que o Ministério da Economia e o “SuperMinistro” Paulo Guedes participaram em mais de 50% dos decretos e em 68% das proposições legislativas. Seja na Agenda Legislativa ou na Agenda Administrativa, é evidente a ênfase nos aspectos econômicos, na construção de condições de governabilidade e na adaptação da estrutura governamental alinhada aos elementos ideológicos neoliberais.
Com isso, o título de “Posto Ipiranga” e a atribuição de assumir um ministério com competências ampliadas, em relação ao anterior Ministério da Fazenda, não foram meras simbologias e retóricas. Ao contrário, o governo Bolsonaro/Guedes deve ser lembrado principalmente pela radicalização do projeto neoliberal. Os acenos de Levy, ainda no governo Dilma 2, a “Ponte para o Futuro” na gestão Temer, foram aprofundados pelo ultraliberalismo de Guedes/Bolsonaro. Portanto, a frente de combate ao bolsonarismo é a economia.
Medidas relacionadas à "Lei e crime" (6% das proposições legislativas e 2% dos decretos), mais que uma questão moral, estão relacionadas ao endurecimento penal, liberação das armas e outras que viabilizam as transformações econômicas ao ampliar meios para conter as reações populares e o caos social. Como Naomi Klein descreve em Doutrina do Choque, graves crises são usadas para acelerar e aprofundar o projeto neoliberal (tivemos a pandemia usada terrivelmente como "janela de oportunidades" para "passar a boiada") e a redução das funções sociais do Estado é acompanhada de ampliação da sua capacidade repressiva e punitiva.
As pautas de costumes foram majoritariamente utilizadas como cortina de fumaça, como distratores no debate público. Elas figuram de modo muito tímido na agenda legislativa: Cultura e Direitos Civis aparecem com 4% cada uma das "Proposições Legislativas" (não aparecem entre os temas de Decreto). Que as pessoas tenham se engajado nesses temas não há problema, a questão central é avaliar o quanto o intenso e dominante engajamento das lideranças políticas de esquerda nas pautas de costumes: (1) limitaram sua força para o embate em torno de um projeto econômico para o país; e/ou (2) favoreceram o governo Bolsonaro a avançar em seu projeto neo/ultraliberal na economia, enquanto se debatia com mais afinco outras questões. Não foi só a pandemia, as reiteradas vezes em que uma declaração, um tuíte ou uma live cheia de baboseiras ocuparam os discursos e ações políticas também ajudaram "passar a boiada".
Infelizmente, essa situação me lembrou de uma prática típica da minha infância e adolescência. E aqui, entrego a idade e corro o risco de causar estranhamento nos mais jovens. Nos anos 1990 e início dos anos 2000, os videogames possuíam controle com fio. Ou seja, para funcionar, o controle era conectado ao console. Na época, nem sempre por maldade, era comum que os mais velhos jogassem entre si e dessem controles desconectados para se livrar das insistências das crianças pequenas. Importante dizer que não tinha essa possibilidade de jogar online pelos videogames na minha infância e adolescência.
Além disso, não tínhamos consoles que salvavam as fases do jogo, bem depois surgiu alguns com memory card (muitas vezes, bem caro). Antes desse cartão, ou jogávamos todas as fases antes de desligar ou tínhamos poucos segundos para anotar um password extenso. Sequer tínhamos celulares que tiravam fotos e as máquinas fotográficas normalmente eram com um filme que demandava “revelação” em uma loja especializada. Ou seja, quase impossível anotar o password, daí controle desconectado para a criança menor para não perder as etapas vencidas.
Havia o medo também de quando poderíamos jogar novamente. Jovens, acreditem: alguns de nossos pais, tios e avós, achavam que o uso de videogames estragavam a televisão. Pode até parecer ruim para quem naturalizou esse mundo tecnológico atual. Mas as lembranças são boas e admito que minha impressão possa ser a saudade da tenra idade - não da época.
Para o mais velho que executava o plano, parecia um ganha-ganha: os maiores jogavam, as crianças menores não choravam e, ao acreditar jogar - e até vencer crianças maiores e adolescentes -, tinham um grande estímulo na autoestima. Não me orgulho, mas também fiz com meu primo sete anos mais jovem. E só quando já éramos adultos confessei a prática. Apesar de já ter passado muito tempo, ele obviamente não gostou nada. Voltando ao assunto inicial.
O governo
Bolsonaro parece ter entregue para oposição um controle desconectado do
console. A oposição comemorava cada recuo, cada exposição em temas salientes no debate público, como as crianças da
minha geração comemoravam o que acreditavam ser a “vitória” sobre mais velhos.
Ao fim e ao cabo, não foram sequer vitórias de Pirro. Eram ilusões, a
medida que o jogo realmente jogado era o da economia. "It's the
economy, stupid!"
Era e será a economia o campo fundamental de disputa. Para tentar enfraquecer a extrema-direita é preciso reverter as amarras criadas por uma concepção econômica focada em socialização das perdas e concentração dos ganhos. Ou Haddad, os políticos e as organizações de esquerda acordam, ou continuaremos a jogar com um controle desligado do console. Tratei disso em dezembro de 2023, como um balanço do primeiro ano e o horizonte nebuloso para o Brasil.
Em tempo, com isso não quero dizer que as pautas de costumes e a defesa das identidades devem ser ignoradas. Apenas alerto para a ineficiência de desconectá-las da luta econômica (luta pela redistribuição). Por exemplo, o "novo" arcabouço fiscal na medida em que limita a capacidade estatal de investir em políticas sociais favorece a manutenção da desigualdade social e do status quo estruturados a partir das classes sociais e superestruturados pelas desigualdades de oportunidades por raça e gênero historicamente constituídas.
Ademais, não serei leviano de reduzir a importância das lutas pelo reconhecimento de qualquer que seja o grupo social discriminado. Ao contrário, recorro à teórica política Ellen Meiksins Wood (2011): além da classe social, as pessoas têm outras identidades sociais, com grande capacidade para dar forma às suas experiências. Por isso, qualquer programa de emancipação precisa ampliar o conhecimento sobre o significado das identidades, entendendo que que elas revelam e o que ocultam sobre a experiência pessoal. O que defendo está em linha com a seguinte reflexão:
[...] a indiferença estrutural do capitalismo pelas identidades sociais das pessoas que explora torna-o capaz de prescindir das desigualdades e opressões extraeconômicas [...] essa mesma indiferença pelas identidades extraeconômicas torna particularmente eficaz e flexível o seu uso como cobertura ideológica pelo capitalismo (Wood, 2011, p. 241).
Nancy Fraser (2009) converge com a constatação de Ellen Wood: o capitalismo no contexto da acumulação flexível introduz uma concepção de mundo tão fragmentária que consegue cooptar as lutas das diversas identidades sociais pelo reconhecimento. Desse modo, o descolamento de uma crítica estrutural pode fazer com que tais lutas contribuam, em momentos específicos, para a expansão capitalista, sem efetivamente garantir a emancipação das identidades exploradas. (O engajamento de alguns bancos em campanhas contra a discriminação e as peças publicitárias supostamente em defesa da diversidade para venda de produtos estão aí para quem quiser ver).
Por exemplo, ao falar do feminismo, Nancy Fraser defende a reconexão da luta pelo reconhecimento "contra a sujeição personalizada à crítica ao sistema capitalista, o qual, ainda que prometa liberação, de fato substitui um modo dominação por outro” (Fraser, 2009, p. 30).
Portanto, sem enfrentar a questão estrutural econômica, não será possível jogar politicamente de modo efetivo contra uma extrema-direita que lança espantalhos para dissimular o debate público, enquanto entrega o que apoiadores e financiadores de poderosas frações burguesas encomendaram.
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Fraser, Nancy (2009). O Feminismo, o Capitalismo e a astúcia da História. Revista Mediações, Londrina, v. 14, n. 2, p. 11-33, jul./dez.
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