terça-feira, 21 de maio de 2024

Se os senadores não agirem com cuidado, a CPI da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas poderá favorecer os bicheiros do Rio

 

Fonte: alphaspirit/Getty Images/Câmara dos Deputados

Jefferson Nascimento*

Contexto Político

Em maio de 2022, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) divulgou os resultados da Operação Calígula. Dentre eles, o MPRJ concluiu que o contraventor/”bicheiro” Rogério de Andrade possuía o monopólio das apostas esportivas desde 2017 e pagava propinas para policiais protegerem o esquema[i]. A atividade era realizada por meio de sites e explorada antes de sua legalização. Veja matéria da época:

[...] os bicheiros cariocas aceitam apostas em partidas do Brasileiro, da bilionária Liga dos Campeões e da Libertadores. [...] Nesta semana, os contraventores bancavam palpites em partidas da Copa do Brasil e de torneios na Alemanha, Rússia, Argentina, Israel e Equador, entre outros. [...] Além de partidas de futebol, as bancas também aceitam palpites em jogos de vôlei e lutas, como o UFC [...] O modelo adotado pelos bicheiros é semelhante ao de países europeus, que usam páginas na internet para receber as apostas [...] É possível dar palpites no vencedor do confronto ou apenas no time que ganha o primeiro tempo. Há também bolão com cinco partidas em cada rodada do Brasileiro. O vencedor pode receber prêmio de até R$ 15 mil nessa modalidade na rodada do próximo final de semana.[ii]

 

As apostas online foram legalizadas pela Lei n° 13.756/2018, que tratava do Fundo Nacional de Segurança Pública e incluiu a liberação das chamadas apostas de quota fixa sem a regulamentação. Com isso, os brasileiros puderam apostar legalmente nas chamadas bets que, desregulamentadas, eram sediadas no exterior, especialmente em paraísos fiscais (incluindo empresas de capital brasileiro). A referida lei fixou o prazo de dois anos (prorrogáveis por mais dois) para o Ministério da Fazenda/Economia regulamentar a atividade. Esse prazo final (com a prorrogação prevista) venceu em dezembro de 2022 - último ano do governo Bolsonaro.

Coube ao governo Lula enviar a Medida Provisória (MP) n°1.182/2023 para iniciar a regulamentação do setor. A partir daí, uma série de emendas sobre a MP fez caminhar o PL 3.623/2023, dando origem à Lei n° 14.790/2023. Nessa tramitação, cabe destacar a posição de alguns parlamentares bolsonaristas da Bancada Evangélica:

  • O senador Eduardo Girão (NOVO-CE) dizia que regulamentar “legitima um sistema que, além de sujeito a fraudes, vicia o cidadão e distorce a natureza do esporte”. Na ocasião, ele falou também dos riscos de manipulação do esporte.[iii]
  • O deputado Eli Borges (PL-TO) disse: "Estamos dando mais um avanço para envolver jovens e cidadãos brasileiros em uma jogatina sem precedentes"[iv].

Apesar da retórica, Girão e Borges ocupavam os respectivos cargos desde 2019 e compuseram a base aliada de Jair Bolsonaro, mas não atuaram para o governo anterior cumprir a determinação legal de regulamentar as apostas.  

A Operação Penalidade Máxima, liderada pelo Ministério Público de Goiás, descobriu que as manipulações realizadas em 2022 foram favorecidas justamente pela falta de regulamentação. Logo, é possível inferir que a inação do governo Bolsonaro e o silêncio do Congresso Nacional colaboraram com o ambiente propício para as manipulações denunciadas pela Operação Penalidade Máxima. 

Ainda assim, parlamentares bolsonaristas, como Girão e Borges, se engajaram quando o atual governo pautou a regulamentação que, legalmente, deveria ter sido feita pela dupla Guedes/Bolsonaro.

 

O Rio de Janeiro, a contravenção e as bets

Em 2023, no anúncio da MP pelo Governo Federal, começaram movimentos que chamam a atenção. A Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj) passou a tensionar: lançou um edital permitindo que empresas credenciadas no estado aceite clientes de todo o Brasil, contrariando a regulamentação federal proposta. A consequência foi a oposição da Caixa Econômica Federal, que administra as atividades lotéricas em âmbito nacional, resultando em contestações na justiça. 

Para ser atrativa, a Loterj ofereceu licenças mais acessíveis e o governo estadual praticava impostos mais baixos aos operadores das apostas online (5% do GGR - Gross Gaming Revenue, enquanto a MP propunha 18% e a lei fixou 12%). A posição da Loterj seguiu as normatizações do governo Cláudio Castro e foi favorecida pela atuação Procon-RJ, que notificou as empresas com base no Decreto Estadual 48.806/23 para assegurar a regularização das bets no estado do Rio de Janeiro.

Os contraventores não ficaram para trás, era preciso se adaptar aos novos tempos e manter o controle sobre a atividade. Paralelamente a estratégias empresariais para organizar a atividade, velhas e temidas práticas foram mobilizadas. Por exemplos, ameaçaram o investidor do site Apostou.com, segundo o MPRJ. O site já estava credenciado na Loterj, mas o investidor paranaense desistiu do negócio após a “intervenção da contravenção”[v]

Em fevereiro deste ano, segundo o MPRJ, o recado foi brutal e bem mais claro a qualquer investidor interessado no ramo: o advogado Rodrigo Crespo Marinho foi executado na tarde de uma segunda-feira no centro do Rio de Janeiro, em frente ao seu escritório e próximo à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e à Defensoria Pública-RJ. Marinho era um estudioso das apostas online, engajado pela legalização e, segunda consta, “se preparava para deixar o escritório de advocacia em que trabalhava para passar a atuar legalmente no mercado de sites de apostas online”.[vi]

Três participantes foram presos: o policial militar Leandro Machado da Silva providenciou o carro; Cezar Daniel Mondego de Souza, detentor de cargo comissionado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), monitorava Marinho; e Eduardo Sobreira Moraes dirigia o carro e levava Mondego para monitorar a vítima. Como parte da investigação, Adilson Oliveira Coutinho Filho, o contraventor Adilsinho, está sendo investigado junto a outras oito pessoas. Segundo a denúncia do MPRJ:

      Há informações, ainda passíveis de serem confirmadas, que os criminosos/mafiosos exploradores de jogos de azar (chamados no Rio de Janeiro somente de 'contraventores') estariam se aprofundando no conhecimento para exploração lucrativa de jogos de aposta online em processo de legalização. Trata-se de atual 'febre' no Brasil, fácil inclusive de ser utilizado para lavagem de dinheiro de atividades criminosas.[vii]

O investigado Adilsinho, patrono da Escola de Samba Salgueiro, compõe a Nova Cúpula do Jogo do Bicho do Rio de Janeiro. Ele é aliado de Rogério de Andrade, patrono da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Segundo o MPRJ e Polícia Civil, Adilsinho comandou a execução de bicheiros ligados a Bernardo Bello – desafeto de Rogério de Andrade e herdeiro de Waldemir Paes Garcia, o Maninho. Curiosamente, Maninho foi mandachuva na Salgueiro, hoje nas mãos de Adilsinho. Reiterando as informações iniciais: Rogério de Andrade, aliado de Adilsinho, domina o ramo de apostas online no Rio de Janeiro desde 2017 - ou dominou até pelo menos 2022, segundo o MPRJ[viii].

 

Os bicheiros, a política e a CPI: coincidências e correlações

Os contraventores também mobilizam estratégias para se aproximar de autoridades políticas. Rogério de Andrade recentemente autorizou a cessão da quadra da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel para o lançamento de candidatos bolsonaristas às eleições do Rio de Janeiro. O evento realizado em 16 de março contou com a presença de Jair e Flávio Bolsonaro, do governador Cláudio Castro e do senador Carlos Portinho e apresentou Alexandre Ramagem como pré-candidato à prefeitura carioca.

Um mês depois, Andrade obteve por despacho sigiloso o direito de retirar a tornozeleira eletrônica por decisão monocrática de Kassio Nunes Marques, nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo então presidente Jair Bolsonaro. O mandado de prisão resultou da mesma Operação Calígula (2022) que, dentre outros crimes, identificou Andrade como detentor do monopólio das apostas esportivas online. Jorge Mussi[ix], ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), havia determinado a soltura de Andrade em dezembro de 2022 mediante o uso de tornozeleira eletrônica, o recolhimento noturno e o comparecimento periódico em juízo.

Além da retirada da tornozeleira, Nunes Marques já havia negado pedido de prisão contra Andrade em 2022 e esteve nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro em fevereiro deste ano.[x] Marques alega que esteve em camarotes institucionais do governo estadual do Rio de Janeiro e da prefeitura carioca sem, portanto, relação com alguma escola específica ou seus dirigentes.

Em todo caso, fica o registro da coincidência: nomeado por Bolsonaro, negou prisão ao patrono da Mocidade em 2022, esteve esse ano pela primeira vez no desfila das escolas de samba do Rio e, poucos meses depois, ordenou a retirada da tornozeleira eletrônica do patrono de uma das escolas – a mesma que cedeu a quadra para o lançamento da campanha de bolsonaristas para a eleição carioca com presença de Jair e Flávio Bolsonaro.

Outro participante do lançamento de campanha bolsonarista na Mocidade Independente, de Rogério de Andrade, foi o senador Carlos Portinho (PL-RJ). Portinho, apesar de suplente na comissão, foi um dos protagonistas na participação de John Textor na CPI da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas. A CPI foi instalada em 10 de abril e é liderada pelo presidente Jorge Kajuru (PSB-GO), o vice-presidente Eduardo Girão (NOVO-CE) e o relator Romário Faria (PL-RJ).

Essa CPI já era cogitada no final do ano passado e ganhou impulso com a publicidade das acusações de Textor em fevereiro e março, quando o salgueirense Romário liderou o requerimento e a coleta de assinaturas em um ambiente de grande atenção da opinião pública.

Não é novidade a aproximação entre bolsonaristas e setores que realizam seus ganhos de forma pouco usual e/ou questionável. 

Não ganharam voz por meio dos bolsonaristas apenas os representantes de frações da burguesia emergente do Brasil, fora dos grupos tradicionais de seus respectivos setores, como Luciano Hang, novos grupos do mercado financeiro em oposição aos bancos tradicionais, e setores emergentes do agronegócio. Também viram Bolsonaro e os bolsonaristas como representantes: grileiros, posseiros, mineradores ilegais, latifundiários que desmatam áreas de reserva, milicianos cariocas (inclusive mandantes de homicídios, como os irmãos Brasão), defensores da legalização de cassinos e outros jogos de azar e diversos outros tipos de pessoas que enriquecem às margens das leis.

Logo, o que tratamos aqui pode ser coincidência e/ou correlação; mas, de forma alguma, poderia ser tratado como exceção.

 

Um alerta para os membros da CPI

É fundamental enfatizar que ninguém sério nega que exista manipulação. Porém, há uma série de iniciativas para enfrentar a questão. Uma delas é a contratação da empresa Sportradar para fazer o monitoramento de integridade do futebol brasileiro pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Essa empresa é a principal no segmento, monitorando jogos da UEFA, FIFA, Conmebol, NBA, MLB e diversos outros esportes com um método validado pela Universidade de Liverpool.

Em 2022, a CBF instituiu a Unidade de Integridade chefiada por Eduardo Gussem (ex-Procurador-Geral de Justiça do Rio de Janeiro) para um tratamento especializado acerca da manipulação de resultados. Além disso, desde 2023, há uma integração entre a CBF, a Sportsradar e a Polícia Federal (PF) para que a entidade esportiva encaminhe à PF a lista de partidas suspeitas, segundo o relatório da empresa de monitoramento, para subsidiar as investigações sobre possíveis manipulações. 

Essa integração é favorecida pelo Memorando de Entendimento firmado em 2021 pela Sportradar e a Polícia Federal. Em nota à imprensa, a Coordenação-Geral de Comunicação Social da PF destacou a expertise da Sportradar e sua colaboração com autoridades em diversos países:

Diante dessa realidade, o acordo celebrado mostra-se de suma importância, uma vez que a Sportradar é reconhecida por cooperar ativamente, na atualidade, com mais de 20 agências de aplicação da lei em todo mundo, fornecendo-lhes serviços de inteligência algorítmica e relatórios de análise preditiva de fundamental importância para identificação e desarticulação de organizações criminosas envolvidas com apostas e corrupção em eventos esportivos.

Esses movimentos contribuíram para dois avanços: (1) a quantidade de partidas suspeitas caiu 30% em 2023 em comparação à 2022 (ano em que a Operação Penalidade Máxima identificou partidas, jogadores e apostadores) - o melhor resultado desde 2020; e (2) diferente de 2022, em 2023 nenhuma das partidas da Série A do Campeonato Brasileiro foi considerada suspeita.  

Como a CPI nasceu para tratar de Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas, temos que ficar atentos ao tipo de regulamentação, indiciamentos e instauração de inquéritos que constarão no relatório final. Especialmente, ao tipo de tratamento que será dado às apostas de quota fixa.

Se a CPI, defender a prerrogativa das Loterias Estaduais, não só o interesse do governo estadual/Loterj será favorecido, como a capacidade de pressão e influência dos contraventores interessados nas apostas online aumentará. Nesse caso, não é verdadeiro o argumento de descentralizar para aumentar a capacidade de fiscalização pelas Polícias Civis e Ministérios Públicos estaduais, pois só estão funcionando as loterias estaduais do Rio de Janeiro e do Paraná, enquanto a da Paraíba está em processo para iniciar em breve as atividades. As demais unidades federativas ainda precisam organizar sua atuação.

No caso do Rio de Janeiro, não é ilação afirmar a vulnerabilidade do governo estadual frente aos interesses de contraventores e milicianos. Os novos avanços do Caso Marielle, após a federalização das investigações, estão aí para quem quiser ler, assistir e ouvir. A partir dessa realidade, as pressões advindas poderiam impactar nos critérios exigidos para credenciamento e colocaria parte desses empresários interessados na mira dos contraventores.

É preciso ter em mente que o risco de manipulação aumenta em um ambiente desregulamentado e de proximidade física entre grupos de apostadores e/ou bets inidôneas em relação aos jogadores, árbitros e outros atores do futebol.

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 * Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política, professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro "Ellen Wood: o resgate da classe e a luta pela democracia" (Appris)



[vii] Ver link da nota anterior

[viii] Ver link da primeira nota

[ix] Mussi teve aposentadoria concedida em dezembro de 2022 pelo então presidente Bolsonaro. Antes, o ministro negou recursos da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o senador Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas”: manteve a anulação da quebra de sigilo e negou ida o inquérito para o STF. Mussi também negou investigações contra Luciano Hang por doação ilegal para a campanha de Bolsonaro em 2018 e a acusação de abuso do poder econômico por disparo em massa da campanha de Bolsonaro então no Partido Social Liberal (PSL).


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