Contexto Político
Em maio de
2022, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) divulgou os resultados da
Operação Calígula. Dentre eles, o MPRJ concluiu que o contraventor/”bicheiro”
Rogério de Andrade possuía o monopólio das apostas esportivas
desde 2017 e pagava propinas para policiais protegerem o esquema[i].
A atividade era realizada por meio de sites e explorada
antes de sua legalização. Veja matéria da época:
[...] os bicheiros cariocas aceitam apostas em
partidas do Brasileiro, da bilionária Liga dos Campeões e da Libertadores. [...]
Nesta semana, os contraventores bancavam palpites em partidas da Copa do
Brasil e de torneios na Alemanha, Rússia, Argentina, Israel e Equador, entre
outros. [...] Além de partidas de futebol, as bancas também aceitam
palpites em jogos de vôlei e lutas, como o UFC [...] O modelo adotado
pelos bicheiros é semelhante ao de países europeus, que usam páginas na
internet para receber as apostas [...] É possível dar palpites no
vencedor do confronto ou apenas no time que ganha o primeiro tempo. Há também
bolão com cinco partidas em cada rodada do Brasileiro. O vencedor pode receber
prêmio de até R$ 15 mil nessa modalidade na rodada do próximo final de semana.[ii]
As apostas online foram legalizadas pela Lei n° 13.756/2018, que tratava do Fundo Nacional de Segurança Pública e incluiu a liberação das chamadas apostas de quota fixa sem a regulamentação. Com isso, os brasileiros puderam apostar legalmente nas chamadas bets que, desregulamentadas, eram sediadas no exterior, especialmente em paraísos fiscais (incluindo empresas de capital brasileiro). A referida lei fixou o prazo de dois anos (prorrogáveis por mais dois) para o Ministério da Fazenda/Economia regulamentar a atividade. Esse prazo final (com a prorrogação prevista) venceu em dezembro de 2022 - último ano do governo Bolsonaro.
Coube ao governo Lula enviar a Medida Provisória (MP) n°1.182/2023 para iniciar a regulamentação do setor. A partir daí, uma série de emendas sobre a MP fez caminhar o PL 3.623/2023, dando origem à Lei n° 14.790/2023. Nessa tramitação, cabe destacar a posição de alguns parlamentares bolsonaristas da Bancada Evangélica:
- O senador Eduardo Girão (NOVO-CE) dizia que regulamentar “legitima um sistema que, além de sujeito a fraudes, vicia o cidadão e distorce a natureza do esporte”. Na ocasião, ele falou também dos riscos de manipulação do esporte.[iii]
- O deputado Eli Borges (PL-TO) disse: "Estamos dando mais um avanço para envolver jovens e cidadãos brasileiros em uma jogatina sem precedentes"[iv].
Apesar da retórica, Girão e Borges ocupavam os respectivos cargos desde 2019 e compuseram a base aliada de Jair Bolsonaro, mas não atuaram para o governo anterior cumprir a determinação legal de regulamentar as apostas.
A Operação Penalidade Máxima, liderada pelo Ministério Público de Goiás, descobriu que as manipulações realizadas em 2022 foram favorecidas justamente pela falta de regulamentação. Logo, é possível inferir que a inação do governo Bolsonaro e o silêncio do Congresso Nacional colaboraram com o ambiente propício para as manipulações denunciadas pela Operação Penalidade Máxima.
Ainda assim, parlamentares bolsonaristas, como Girão e Borges, se engajaram quando o atual governo pautou a regulamentação que, legalmente, deveria ter sido feita pela dupla Guedes/Bolsonaro.
O Rio de
Janeiro, a contravenção e as bets
Em 2023, no anúncio da MP pelo Governo Federal, começaram movimentos que chamam a atenção. A Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj) passou a tensionar: lançou um edital permitindo que empresas credenciadas no estado aceite clientes de todo o Brasil, contrariando a regulamentação federal proposta. A consequência foi a oposição da Caixa Econômica Federal, que administra as atividades lotéricas em âmbito nacional, resultando em contestações na justiça.
Para ser atrativa, a Loterj ofereceu licenças mais
acessíveis e o governo estadual praticava impostos mais baixos aos operadores
das apostas online (5% do GGR - Gross Gaming Revenue, enquanto a MP propunha
18% e a lei fixou 12%). A posição da Loterj seguiu as normatizações do governo
Cláudio Castro e foi favorecida pela atuação Procon-RJ, que notificou as
empresas com base no Decreto Estadual 48.806/23 para assegurar a regularização
das bets no estado do Rio de Janeiro.
Os contraventores não ficaram para trás, era preciso se adaptar aos novos tempos e manter o controle sobre a atividade. Paralelamente a estratégias empresariais para organizar a atividade, velhas e temidas práticas foram mobilizadas. Por exemplos, ameaçaram o investidor do site Apostou.com, segundo o MPRJ. O site já estava credenciado na Loterj, mas o investidor paranaense desistiu do negócio após a “intervenção da contravenção”[v].
Em fevereiro deste ano, segundo o MPRJ, o recado foi brutal e bem mais claro a
qualquer investidor interessado no ramo: o advogado Rodrigo Crespo Marinho foi
executado na tarde de uma segunda-feira no centro do Rio de Janeiro, em frente
ao seu escritório e próximo à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e à
Defensoria Pública-RJ. Marinho era um estudioso das apostas online, engajado
pela legalização e, segunda consta, “se preparava para deixar o escritório de
advocacia em que trabalhava para passar a atuar legalmente no mercado de sites
de apostas online”.[vi]
Três participantes foram presos: o policial militar Leandro Machado da
Silva providenciou o carro; Cezar Daniel Mondego de Souza, detentor de cargo
comissionado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), monitorava
Marinho; e Eduardo Sobreira Moraes dirigia o carro e levava Mondego para
monitorar a vítima. Como parte da investigação, Adilson Oliveira Coutinho
Filho, o contraventor Adilsinho, está sendo investigado junto a outras oito
pessoas. Segundo a denúncia do MPRJ:
Há informações, ainda passíveis de
serem confirmadas, que os criminosos/mafiosos exploradores de jogos de azar
(chamados no Rio de Janeiro somente de 'contraventores') estariam se
aprofundando no conhecimento para exploração lucrativa de jogos de aposta
online em processo de legalização. Trata-se de atual 'febre' no Brasil, fácil
inclusive de ser utilizado para lavagem de dinheiro de atividades criminosas.[vii]
O investigado Adilsinho, patrono da Escola de Samba Salgueiro, compõe a
Nova Cúpula do Jogo do Bicho do Rio de Janeiro. Ele é aliado de Rogério
de Andrade, patrono da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel.
Segundo o MPRJ e Polícia Civil, Adilsinho comandou a execução de bicheiros
ligados a Bernardo Bello – desafeto de Rogério de Andrade e herdeiro de Waldemir
Paes Garcia, o Maninho. Curiosamente, Maninho foi mandachuva na Salgueiro, hoje
nas mãos de Adilsinho. Reiterando as informações iniciais: Rogério de Andrade,
aliado de Adilsinho, domina o ramo de apostas online no Rio de Janeiro desde
2017 - ou dominou até pelo menos 2022, segundo o MPRJ[viii].
Os
bicheiros, a política e a CPI: coincidências e correlações
Os contraventores também mobilizam estratégias para se aproximar de
autoridades políticas. Rogério de Andrade recentemente autorizou a cessão da
quadra da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel para o
lançamento de candidatos bolsonaristas às eleições do Rio de Janeiro. O evento
realizado em 16 de março contou com a presença de Jair e Flávio Bolsonaro, do
governador Cláudio Castro e do senador Carlos Portinho e apresentou Alexandre
Ramagem como pré-candidato à prefeitura carioca.
Um mês depois, Andrade obteve por despacho
sigiloso o direito de retirar a tornozeleira eletrônica por decisão monocrática
de Kassio Nunes Marques, nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
pelo então presidente Jair Bolsonaro. O mandado de prisão resultou da mesma
Operação Calígula (2022) que, dentre outros crimes, identificou Andrade como detentor do monopólio das
apostas esportivas online. Jorge Mussi[ix],
ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), havia determinado a soltura de
Andrade em dezembro de 2022 mediante o uso de tornozeleira eletrônica, o
recolhimento noturno e o comparecimento periódico em juízo.
Além da retirada da tornozeleira, Nunes Marques já havia negado pedido
de prisão contra Andrade em 2022 e esteve nos desfiles das escolas de samba do
Rio de Janeiro em fevereiro deste ano.[x]
Marques alega que esteve em camarotes institucionais do governo estadual do Rio
de Janeiro e da prefeitura carioca sem, portanto, relação com alguma escola
específica ou seus dirigentes.
Em todo caso, fica o registro da coincidência: nomeado por Bolsonaro,
negou prisão ao patrono da Mocidade em 2022, esteve esse ano pela primeira vez
no desfila das escolas de samba do Rio e, poucos meses depois, ordenou a
retirada da tornozeleira eletrônica do patrono de uma das escolas – a mesma que
cedeu a quadra para o lançamento da campanha de bolsonaristas para a eleição
carioca com presença de Jair e Flávio Bolsonaro.
Outro participante do lançamento de campanha bolsonarista na Mocidade
Independente, de Rogério de Andrade, foi o senador Carlos Portinho (PL-RJ).
Portinho, apesar de suplente na comissão, foi um dos protagonistas na
participação de John Textor na CPI da Manipulação de Jogos e Apostas
Esportivas. A CPI foi instalada em 10 de abril e é liderada pelo presidente
Jorge Kajuru (PSB-GO), o vice-presidente Eduardo Girão (NOVO-CE) e o relator
Romário Faria (PL-RJ).
Essa CPI já era cogitada no final do ano passado e ganhou impulso com a
publicidade das acusações de Textor em fevereiro e março, quando o salgueirense
Romário liderou o requerimento e a coleta de assinaturas em um ambiente de
grande atenção da opinião pública.
Não é novidade a aproximação entre bolsonaristas e setores que
realizam seus ganhos de forma pouco usual e/ou questionável.
Não ganharam voz por meio dos bolsonaristas apenas os representantes de frações da burguesia emergente do Brasil, fora dos grupos tradicionais de seus respectivos setores, como Luciano Hang, novos grupos do mercado financeiro em oposição aos bancos tradicionais, e setores emergentes do agronegócio. Também viram Bolsonaro e os bolsonaristas como representantes: grileiros, posseiros, mineradores ilegais, latifundiários que desmatam áreas de reserva, milicianos cariocas (inclusive mandantes de homicídios, como os irmãos Brasão), defensores da legalização de cassinos e outros jogos de azar e diversos outros tipos de pessoas que enriquecem às margens das leis.
Logo, o que tratamos aqui pode ser coincidência e/ou correlação; mas,
de forma alguma, poderia ser tratado como exceção.
Um alerta
para os membros da CPI
É fundamental enfatizar que ninguém sério nega que exista manipulação. Porém, há uma série de iniciativas para enfrentar a questão. Uma delas é a contratação da empresa Sportradar para fazer o monitoramento de integridade do futebol brasileiro pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Essa empresa é a principal no segmento, monitorando jogos da UEFA, FIFA, Conmebol, NBA, MLB e diversos outros esportes com um método validado pela Universidade de Liverpool.
Em 2022, a CBF instituiu a Unidade de Integridade chefiada por Eduardo Gussem (ex-Procurador-Geral de Justiça do Rio de Janeiro) para um tratamento especializado acerca da manipulação de resultados. Além disso, desde 2023, há uma integração entre a CBF, a Sportsradar e a Polícia Federal (PF) para que a entidade esportiva encaminhe à PF a lista de partidas suspeitas, segundo o relatório da empresa de monitoramento, para subsidiar as investigações sobre possíveis manipulações.
Essa integração é favorecida pelo Memorando de Entendimento firmado em 2021 pela Sportradar e a Polícia Federal. Em nota à imprensa, a Coordenação-Geral de Comunicação Social da PF destacou a expertise da Sportradar e sua colaboração com autoridades em diversos países:
Diante dessa realidade, o acordo celebrado mostra-se de suma importância, uma vez que a Sportradar é reconhecida por cooperar ativamente, na atualidade, com mais de 20 agências de aplicação da lei em todo mundo, fornecendo-lhes serviços de inteligência algorítmica e relatórios de análise preditiva de fundamental importância para identificação e desarticulação de organizações criminosas envolvidas com apostas e corrupção em eventos esportivos.
Esses movimentos contribuíram para dois avanços: (1) a quantidade de partidas suspeitas caiu 30% em 2023 em comparação à 2022 (ano em que a Operação Penalidade Máxima identificou partidas, jogadores e apostadores) - o melhor resultado desde 2020; e (2) diferente de 2022, em 2023 nenhuma das partidas da Série A do Campeonato Brasileiro foi considerada suspeita.
Como a CPI nasceu para tratar de Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas, temos que ficar atentos ao tipo de regulamentação, indiciamentos e instauração de inquéritos que constarão no relatório final. Especialmente, ao tipo de tratamento que será dado às apostas de quota fixa.
Se a CPI, defender a prerrogativa das Loterias Estaduais, não só o
interesse do governo estadual/Loterj será favorecido, como a capacidade de
pressão e influência dos contraventores interessados nas apostas online
aumentará. Nesse caso, não é verdadeiro o argumento de descentralizar para
aumentar a capacidade de fiscalização pelas Polícias Civis e Ministérios
Públicos estaduais, pois só estão funcionando as loterias estaduais do Rio de
Janeiro e do Paraná, enquanto a da Paraíba está em processo para iniciar em breve as
atividades. As demais unidades federativas ainda precisam organizar sua atuação.
No caso do Rio de Janeiro, não é ilação afirmar a vulnerabilidade do
governo estadual frente aos interesses de contraventores e milicianos. Os novos
avanços do Caso Marielle, após a federalização das investigações, estão
aí para quem quiser ler, assistir e ouvir. A partir dessa realidade, as pressões advindas poderiam
impactar nos critérios exigidos para credenciamento e colocaria parte desses
empresários interessados na mira dos contraventores.
É preciso ter em mente que o risco de manipulação aumenta em um
ambiente desregulamentado e de proximidade física entre grupos de apostadores
e/ou bets inidôneas em relação aos jogadores, árbitros e outros atores
do futebol.
[i] https://www.uol.com.br/esporte/ultimas-noticias/2022/05/12/rogerio-de-andrade-domina-jogo-de-apostas-de-futebol-ha-cinco-anos-diz-mp.htm
[ii] https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2017/08/1910912-ilegais-apostas-esportivas-sao-oferecidas-por-bicheiros-no-rio.shtml
.
[iii]
Agência Senado de Notícias: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2024/01/03/e-sancionada-a-lei-que-regulamenta-as-apostas-esportivas-on-line-as-bets
[iv]
Agência Câmara de Notícias: https://www.camara.leg.br/noticias/1029089-CAMARA-APROVA-PROJETO-QUE-REGULAMENTA-APOSTAS-ON-LINE
[v] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/04/30/empresa-de-apostas-online-deixou-negocios-no-rio-por-intervencao-da-contravencao-aponta-mprj.ghtml
[vi] https://cbn.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2024/04/30/morte-de-advogado-no-centro-do-rio-foi-recado-da-contravencao-contra-novos-empresarios-do-mercado-de-apostas.ghtml
[vii]
Ver link da nota anterior
[viii]
Ver link da primeira nota
[ix]
Mussi teve aposentadoria concedida em dezembro de 2022 pelo então presidente
Bolsonaro. Antes, o ministro negou recursos da Procuradoria-Geral da República
(PGR) contra o senador Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas”: manteve a
anulação da quebra de sigilo e negou ida o inquérito para o STF. Mussi também
negou investigações contra Luciano Hang por doação ilegal para a campanha de
Bolsonaro em 2018 e a acusação de abuso do poder econômico por disparo em massa
da campanha de Bolsonaro então no Partido Social Liberal (PSL).
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