O CAPITALISMO INDIGNO E AS "TRAGÉDIAS" AMBIENTAIS
Por Fabrício Maciel, publicado orginalmente em A terra é redonda, em 19 de maio de 2024.
É impossível não se emocionar ao ver as tristes cenas vindas
do Rio Grande do Sul. O que se apresenta como uma grande tragédia natural, em
narrativas sensacionalistas como a do Fantástico, na Globo, na verdade é também
um crime. A caracterização do fato como tal, entretanto, exige alguma reflexão,
para além das imagens à primeira vista.
O que estamos presenciando, na verdade, é um dos frutos mais
perversos e perigosos do novo sistema econômico e cultural global que eu tenho
definido como “capitalismo indigno”. Com esta expressão, procuro tematizar o
novo capitalismo que, desde os anos de 1970, se especializou em naturalizar o
desvalor da vida humana como um todo, inclusive nos países ditos centrais.
Hoje, na Europa, por exemplo, ninguém pode afirmar que está “seguro”. Segurança
é um sentimento do passado.
Um dos maiores pensadores das últimas décadas, Ulrick Beck
(2011), foi incisivo e visionário ao desenvolver, ainda nos anos de 1980, sua
conhecida tese da sociedade de risco. Em outras palavras, o autor estava
mostrando o futuro próximo e altamente perigoso da vida no planeta como um
todo, produzido pelos erros do capitalismo indigno. Para o autor, no período
atual, que ele definia como “segunda modernidade”, as sociedades contemporâneas
produziriam muito mais “risco” do que desigualdade.
Mal interpretado por alguns críticos, o que o autor queria
dizer não é que o capitalismo parou de produzir desigualdade, esta que sempre
será um de seus efeitos centrais, mas sim que a questão do risco se coloca em
primeiro plano. Atualmente, nenhuma região do planeta é totalmente segura,
ainda que algumas sejam, por razões históricas, mais seguras do que outras.
Não é outra coisa o que vemos nas tristes imagens do Rio
Grande do Sul. A revolta da natureza, fruto do aquecimento global e de questões
puramente políticas do capitalismo indigno, pode causar rapidamente profundos
efeitos na vida das pessoas. Ela pode colocar em poucas horas milhões de
pessoas em situação de vulnerabilidade, e isso para além da condição de classe.
É claro que, considerando as desigualdades territoriais, os mais pobres são os
primeiros a ser afetados, por habitarem os territórios mais vulneráveis.
Entretanto, nenhum território está totalmente seguro. Somos todos vulneráveis.
A pergunta que não quer calar é a seguinte: até quando o
sistema político e as elites econômicas, que na prática ditam os caminhos da
humanidade, não entenderão que a grande máquina do capitalismo indigno precisa
ser freada? Chegaremos ao limite do risco para que isso aconteça? A resposta
parece ser um pavoroso sim. Não parece haver força política e econômica
consciente que queira enfrentar o problema mais grave da humanidade, que é
exatamente a destruição de nossa casa.
Ninguém pode dizer, neste sentido, que não fomos avisados.
Não falta conhecimento científico geológico, político, econômico, e de outras
ciências sociais e da natureza, que não possa deixar claro o rumo equivocado da
história moderna. Atualmente, a discussão sobre o antropoceno ou, como prefere Jason
Moore (2022), do “capitaloceno”, deixa claro termos chegado a um momento no
qual não dá mais para permitir que a máquina do capitalismo conduza a si mesma
desenfreadamente. Algo bastante ruim há de acontecer. Na verdade, já está acontecendo.
O sociólogo alemão Klaus Dörre (2022), por exemplo, é um dos
que foram incisivos ao mostrar que estamos diante de uma dupla crise
econômico-ecológica que exige, especialmente nos países centrais, detentores da
maior parte do capital e do poder no mundo, alguma ação urgente. Não há nada
concreto, entretanto, que nos garanta a possibilidade de este tipo de ação emergir
do Atlântico Norte. Talvez seja no cone sul do mundo, onde a maioria das
“tragédias” acontecem, que tenhamos a possibilidade de alguma reação efetiva.
Na dimensão da solidariedade, pelo menos, temos visto várias ações em todo o
Brasil, em nome de nossos irmãos do sul.
Não devemos, entretanto, romantizar a solidariedade, que é,
sem dúvida, indispensável em tempos de tragédia e sofrimento humano. A ação do
Estado é necessária e fundamental. É ele quem tem a responsabilidade e a
legitimidade para agir, em defesa da sociedade, não deixando este ser tão
indefeso responsável por si mesmo. Além disso, como ressaltou recentemente
Hartmut Rosa (2024), em discussão sobre o contexto da pandemia, o Estado não é
só responsável e legítimo, mas ele simplesmente pode agir, para além de teorias
pessimistas que não acreditam em sua possibilidade de ação.
Outro sociólogo alemão, Stephan Lessenich (2018), também
contribuiu de maneira importante para esta discussão ao mostrar que as
sociedades do Atlântico Norte de alguma forma sempre conseguiram “externalizar”
todos os riscos produzidos pelo capitalismo moderno para a sua periferia. Isso
garantiu, em grande medida, um “modo de vida imperial” nas sociedades centrais,
como muito bem definiram Ulrich Brand e Markus Wissen (2017).
Por fim, é preciso dizer com todas as letras que não estamos
lidando aqui com “tragédias” simplesmente, ainda que uma dimensão considerável dos
fenômenos como este no sul do Brasil possa ser caracterizada desta forma.
Trata-se aqui também, em boa medida, do efeito de crimes políticos e
econômicos. Neste ponto, a discussão precisa ser mais profunda do que a troca
de acusações entre políticos e partidos, ainda que, em boa medida, algumas
negligências e negacionismos sejam evidentes. O mais importante, entretanto, é
compreender que o espírito político geral de nossa época, o que guia as ações
políticas efetivas, pode ser definido como tendo dentre um de seus aspectos
centrais um negacionismo ambiental em escala global. Não se trata mais de ver
para crer. Já estamos vendo e ainda não acreditando. Nos encontramos agora como
os músicos do Titanic, tocando harmonicamente uma bela canção enquanto o navio
afunda.
Referências:
Beck, Ulrich. Sociedade de risco. Rumo a uma outra
modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011.
Brand, Ulrich: Wissen, Markus. Imperiale
Lebensweise. Zur Ausbeutung von Mench und Natur im globalen
Kapitalismus. München: Oekom, 2017.
Dörre, Klaus. Teorema da expropriação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2022.
Lessenich, Stephan. Neben uns
die Sintflut. Wie wir auf Kosten anderer Leben. München: Piper Verlag, 2018.
Moore, Jason (Org.) Antropoceno ou capitaloceno?
Natureza, história e a crise do capitalismo. São Paulo: Editora Elefante, 2022.
Rosa, Hartmut. Aceleração. A encruzilhada histórica no
capitalismo tardio: uma análise sociológica da crise do coronavírus. In:
Estanque, Elísio; Barbosa, Agnaldo de Souza; Maciel, Fabrício (Orgs.) Re-trabalhando
as classes no diálogo Norte-Sul. Trabalho e desigualdades no capitalismo
pós-covid. São Paulo: Editora da Unesp, 2024.
* Disponivel em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-05/rio-grande-do-sul-ja-registra-29-mortes-por-causa-das-chuvas, acesso em 31 de maio de 2024.
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