O campista, este swing voter! – ou,
da insustentável natureza conservadora do eleitor goytacá
George Gomes Coutinho**
Os caminhos pavimentados pela
auto-interpretação não são nada triviais, seja para indivíduos ou
coletividades. A maneira como nos vemos, quais valores atribuímos a nós mesmos,
a forma como nos definimos, todo esse pacote simbólico pode aprisionar destinos.
É a “segunda natureza”, aquela construída socialmente, dotada de profunda
eficácia justamente por ocultar o que é em si um “constructo”, um artefato da
cultura humana. Como contamos nossa própria história? O que descrevemos diante
do que vemos no espelho?
Estas narrativas de
auto-compreensão podem se basear, inclusive, em elementos factuais verdadeiros
ou falsos. Podem ser uma descrição eficiente ou podem ser uma fantasia. Não por
acaso gente como Freud apostou tão firmemente no caráter terapêutico da fala
humana. Afinal, por vezes infligimos sofrimento desnecessário a nós mesmos pela
maneira como nos narramos. Parte da cura envolve ressignificar, contar nossa
própria história de outra maneira.
No âmbito da política estas
narrativas de auto-compreensão são ainda menos negligenciáveis e inocentes.
Ora, táticas de comunicação, seus conteúdos, alianças, tudo isso acaba sendo
enfeixado por diagnósticos sobre quem somos politicamente, com quem nos
assemelhamos e contra quem nos opomos. Nestes tempos me preocupa muitíssimo a
definição, tal como se estivéssemos em um circuito fechado a-histórico, do
eleitor campista ser em si um conservador. Este juízo, muito disseminado na
opinião pública local, produz problemas. Vide o beija mão ao bolsonarismo
protagonizado pelas duas oligarquias em disputa na cidade. Sejam os Garotinho,
sejam os Bacellar, ambos os grupos escolheram cortejar o bolsonarismo, mesmo que
nem Wladimir Garotinho e muito menos Rodrigo Bacellar se considerem
propriamente representantes ortodoxos do estilo de fazer política dos Bolsonaro[1]. Sim, ambos poderiam ter
uma relação mais altiva com o bolsonarismo. Talvez até mesmo poderíamos ter
aqui um cordão sanitário que nos protegesse desta forma autoritária de fazer
política que se reivindica representante do conservadorismo nacional. De todo
modo, não foi essa a escolha. A opção se deu pela manutenção das portas abertas
da cidade para o bolsonarismo, como se eventos do padrão de um 08 de janeiro
fossem desimportantes. Arrisco dizer que, dentre os cálculos, talvez os dois
protagonistas dos clãs antagônicos se apressaram em consolidar apoio político
com os Bolsonaro talvez por compartilharem esse diagnóstico difuso e frágil de
um conservadorismo que nos seja intrínseco.
Inclusive, pelo que estamos vendo
no Rio Grande do Sul, o bolsonarismo pode ser um grande adversário para quem
tenha por objetivo o policy making. Falamos aqui de um estilo de fazer
política pilotado por cruzados ideológicos (Couto, 2021) onde a
desinformação é usada como arma política. O bolsonarismo, quando aliado, pode
redundar em um casamento tóxico dotado de um cotidiano de práticas abusivas. A regressão
na cobertura vacinal, em muito deflagrada por desinformação de DNA
bolsonarista, é um outro exemplo disso que estou dizendo.
De todo modo, afinal, de onde veio
esse diagnóstico do suposto conservadorismo campista? Creio que por duas vias.
A primeira, deriva de uma forma de interpretar a nossa cultura política. A
outra é pelos resultados das últimas duas eleições gerais, onde Bolsonaro foi o
vencedor local na disputa para presidência. Irei argumentar que, tanto num caso
como no outro, a afirmação do campista ser intrinsecamente conservador é uma
simplificação que desconsidera o comportamento político real localmente.
Começando da cultura política
local. Não podemos desconsiderar que nossa cidade tem uma cultura política
conservadora consolidada. Cidade de latifúndio, Tradição Família e Propriedade,
dois bispos católicos, resistência ao término da escravidão no século XIX,
etc..Há um caldo cultural conservador inegável, profundo e longevo. O problema
é que há também nesta mesma cidade conflitos no campo, uma vida universitária
plural, abolicionismo, diferentes movimentos identitários. Se há integralistas,
há comunistas. Para o empresariado organizado há igualmente uma tradição
sindical dos trabalhadores do campo e da cidade. Em suma, há dialética e uma
cultura política complexa[2]. Negar isto é praticar
silenciamento histórico.
Se pela via da cultura política a
afirmação não se sustenta, a coisa faz
ainda menos sentido na história eleitoral local neste século. O comportamento
eleitoral campista não é conservador e tampouco intrinsecamente progressista. O
comportamento eleitoral local é de swing voters.
Me explico.
Na tradição eleitoral estadunidense
encontramos o conceito de swing states ou, em uma tradução possível,
“estados pendulares”. No mapa eleitoral dos EUA temos estados mais fieis ou
menos fieis aos partidos dotados de capacidade competitiva no sistema
artificialmente bipolar deles. Há estados mais democratas, há os outros que são
republicanos. Porém, também temos os estados pendulares, os que não foram
galvanizados por nenhum dos lados da disputa. Estes estados, por suas
características e até mesmo pelo momento conjuntural que vivem, são os que
recebem maior investimento das campanhas presidenciais[3]. Afinal, aí não há jogo
ganho. É preciso disputar.
A partir dos estados pendulares a
literatura anglo-saxã cunhou o termo swing voters que irei traduzir por eleitores
pendulares. Em oposição aos core voters (eleitores convictos,
galvanizados ideologicamente), os eleitores pendulares podem votar, no caso dos
EUA, ora em democratas, ora em republicanos (Cox, 2024). Saindo do sistema
artificialmente bipolar dos estadunidenses, creio que podemos aproveitar a
explicação dos eleitores pendulares mesmo em um sistema multipartidário como o
nosso. É a maneira que conseguimos tornar inteligível o voto “lulanaro” ou
“bolsolula”, ou, em outros termos, o eleitor que já demonstrou preferência tanto por Bolsonaro
quanto por Lula em diferentes pleitos.
Voltando para nosso canavial, como diria o saudoso Antônio Roberto de Góis Cavalcanti, o Kapi, olhando
concretamente as eleições em Campos e seus resultados, vemos comportamento pendular
no eleitorado local. Se nos ativermos a todas as eleições majoritárias do ano
2000 até 2022, o que totalizou 13 eventos eleitorais[4] variando entre eleições
locais e gerais, o eleitor local deu vitória aos dois lados do espectro
político. Legendas diversas tiveram a preferência do eleitor: PSDB, MDB, PSL,
PL, PT, PDT, seja em disputas locais ou na concorrência para cargos nacionais
ou estaduais. Ainda, não obstante a representatividade concreta de diferentes
forças partidárias, o eleitor local se demonstrou pautado por seus próprios
interesses e por seus filtros locais. “Meu voto, minhas regras”, digamos assim.
Vejamos.
Em
2002, para presidência, no 1º turno o eleitor expressou sua preferência
por Garotinho como primeiro colocado neste turno da disputa, com 111 mil votos
locais. Lula, em segundo, obteve 61 mil votos e Serra, pelo PSDB, veio em
seguida com 18 mil. No segundo turno o campista optou por Lula, aí alinhado com
o voto nacional, expressando a preferência de 162 mil eleitores, contra 52 mil
votos depositados na chapa tucana.
Importante observar que
nacionalmente Garotinho obteve pouco mais de 15 milhões de votos na disputa
presidencial deste ano.
De todo modo, Lula ganharia
novamente em Campos as eleições presidenciais seguintes em dois turnos em 2006.
Observando as eleições de 2010, no
segundo turno, o eleitor local contrariou o resultado nacional. Se neste ano
Dilma foi eleita contando com 56,05% dos votos válidos nacionalmente, seguida
por José Serra com 43,95%, em Campos o resultado foi o inverso. Localmente a
vitória foi de José Serra, com 52,85% dos votos válidos (124.141 votos) seguido
por Dilma com o percentual de 47,15% (110.731 votos). Aqui Campos optou por um
candidato mais à direita de Dilma em termos programáticos.
Seguindo as convicções locais, no
pleito seguinte em 2014, se dependesse do eleitor campista, o segundo turno
para presidente teria Dilma, pelo PT, concorrendo com Marina Silva naquele
momento no PSB. Duas mulheres, ambas mais pela esquerda que Aécio Neves, PSDB.
Na cidade, no primeiro turno, Dilma conquistou 87703 votos, Marina com 76786
votos e Aécio 66753, respectivamente 35,97%, 31,49% e 27,38% dos votos válidos.
No segundo turno deste mesmo pleito, a vencedora em Campos foi Dilma com 54,67%
dos votos válidos contra os 45,33% angariados localmente por Aécio (aqui, no
segundo turno, prevaleceu a preferência contabilizada também nacionalmente que
colocou mais uma disputa entre PT e PSDB no segundo turno).
Com todas estas evidências, vale mencionar
as históricas eleições locais de 1988 (o que foge do recorte temporal original
que fiz) e a de 2016. Em ambas houve a quebra da permanência no poder de grupos
que, até então, se mantinham como herdeiros diretos do capital político de
mandatários que os antecederam. Em 1988, eleição em único turno, Garotinho,
candidato oposicionista, obteve 36,22% dos votos válidos, derrotando Rockfeller
de Lima, de perfil situacionista, que veio pelo antigo PFL, com 29,57% dos
votos computados[5].
Já em 2016, Rafael Diniz, filho do sociólogo Sergio Diniz, via PPS, obteve os
convincentes 151462 votos, perfazendo 55,19% dos votos válidos, contra o
candidato da “máquina”, Dr. Chicão, ex-vice de Rosinha Garotinho que amealhou
81989 votos, ou 29,88% dos votos válidos. Também em 2016 tivemos um único
turno.
Com tudo que apontei, me parece
insustentável afirmarmos que o eleitor local seja representante de um posicionamento
ideológico fechado e muito menos conservador. O eleitor local se demonstrou
capaz, faticamente, de votar em ambos os lados do espectro político. Para além
disso, por vezes é capaz de contrariar tendências nacionais, obedecendo a filtros
de interesses e de cultura política que lhes são próprios. O campista é um
eleitor pendular, o que torna a disputa por sua preferência algo mais complexo
do que podem supor clichês e modismos ideológicos da conjuntura. Portanto,
progressistas locais, uni-vos! O canavial pode responder, basta ser convencido disso!
Referências
COUTO, Claudio Gonçalves. Do
governo-movimento ao pacto militar-fisiológico. In: AVRITIZER, Leonardo;
KERCHE, Fábio & MARONA, Marjorie. Governo Bolsonaro: retrocesso
democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica, 2021,
p.35-49.
COX, Gary W. Swing voters, core
voter and distributive politics. In: https://leitner.yale.edu/sites/default/files/files/resources/docs/cox.pdf, acesso em 30 de abril de 2024.
Paper, 23 pp.
** Professor associado da área de
Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais na UFF-Campos - E-mail para contato: georgec@id.uff.br
*** Disponível em: https://x.com/swingvotedc, acesso em 21 de maio de 2024.
[1] Em perfil na Folha de São Paulo,
Rodrigo Bacellar foi categórico: “Não sou bolsonarista raiz. Não gosto dos
exageros. Tenho minhas críticas, mas também tenho minhas convergências”.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/04/presidente-da-alerj-tem-ascensao-meteorica-faz-sombra-a-castro-e-antecipa-disputa-com-paes.shtml,
acesso em 20 de maio de 2024. A matéria foi publicada em 27 de abril do ano
corrente. Todavia, falando agora sobre o outro clã , Clarissa Garotinho propriamente,
esta parece ser muito mais afinada com o playbook do bolsonarismo, vide
até mesmo a participação da ex-deputada na infame campanha pelo voto impresso.
Já seu irmão prefeito, Wladimir, optou democraticamente em deixar seu
secretariado livre para apoiar quem achasse mais razoável no segundo turno
presidencial de 2022.
[2] A historiadora
Rafaela Machado já se pronunciou indignada a respeito. Recomendo o vídeo feito
por ela disponível em seu perfil do instagram: https://www.instagram.com/p/C66KwADu45B/,
acesso em 21 de maio de 2024. O tema é a Campos do século XIX e a desinformação
propagada por muita gente boa de que a cidade foi a última do Brasil a abolir a
escravidão. No vídeo Rafaela apresenta com dados e argumentos um cenário muito
mais dinâmico e conflitivo. Como disse, há escravistas... mas, há
abolicionistas! E não, Campos não foi a última cidade a abolir a escravidão.
Isso é desinformação.
[3] Neste ano de eleições presidenciais por lá os estados
pendulares são Arizona, Geórgia, Michigan, Nevada, Pennsylvania e Wisconsin.
Mais detalhes em: https://www.opeu.org.br/2024/05/18/swing-states-e-a-eleicao-presidencial-2024/,
acesso em 21 de maio de 2025.
[4] No Brasil temos eleições regulares
de dois em dois anos. Portanto, no período teríamos 12 eventos eleitorais. Mas,
em Campos, no ano de 2006, tivemos duas eleições. Em março, para prefeitura,
uma eleição suplementar dada a cassação da chapa vencedora no pleito de 2004. E
em outubro de 2006 também tivemos eleições regulares para presidência, governo
do estado, etc..
[5] Garotinho obteve 62953 votos e
Rockfeller 51408.
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