terça-feira, 21 de maio de 2024

O campista, este swing voter! – ou, da insustentável natureza conservadora do eleitor goytacá

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O campista, este swing voter! – ou, da insustentável natureza conservadora do eleitor goytacá


George Gomes Coutinho**


Os caminhos pavimentados pela auto-interpretação não são nada triviais, seja para indivíduos ou coletividades. A maneira como nos vemos, quais valores atribuímos a nós mesmos, a forma como nos definimos, todo esse pacote simbólico pode aprisionar destinos. É a “segunda natureza”, aquela construída socialmente, dotada de profunda eficácia justamente por ocultar o que é em si um “constructo”, um artefato da cultura humana. Como contamos nossa própria história? O que descrevemos diante do que vemos no espelho?

Estas narrativas de auto-compreensão podem se basear, inclusive, em elementos factuais verdadeiros ou falsos. Podem ser uma descrição eficiente ou podem ser uma fantasia. Não por acaso gente como Freud apostou tão firmemente no caráter terapêutico da fala humana. Afinal, por vezes infligimos sofrimento desnecessário a nós mesmos pela maneira como nos narramos. Parte da cura envolve ressignificar, contar nossa própria história de outra maneira.

No âmbito da política estas narrativas de auto-compreensão são ainda menos negligenciáveis e inocentes. Ora, táticas de comunicação, seus conteúdos, alianças, tudo isso acaba sendo enfeixado por diagnósticos sobre quem somos politicamente, com quem nos assemelhamos e contra quem nos opomos. Nestes tempos me preocupa muitíssimo a definição, tal como se estivéssemos em um circuito fechado a-histórico, do eleitor campista ser em si um conservador. Este juízo, muito disseminado na opinião pública local, produz problemas. Vide o beija mão ao bolsonarismo protagonizado pelas duas oligarquias em disputa na cidade. Sejam os Garotinho, sejam os Bacellar, ambos os grupos escolheram cortejar o bolsonarismo, mesmo que nem Wladimir Garotinho e muito menos Rodrigo Bacellar se considerem propriamente representantes ortodoxos do estilo de fazer política dos Bolsonaro[1]. Sim, ambos poderiam ter uma relação mais altiva com o bolsonarismo. Talvez até mesmo poderíamos ter aqui um cordão sanitário que nos protegesse desta forma autoritária de fazer política que se reivindica representante do conservadorismo nacional. De todo modo, não foi essa a escolha. A opção se deu pela manutenção das portas abertas da cidade para o bolsonarismo, como se eventos do padrão de um 08 de janeiro fossem desimportantes. Arrisco dizer que, dentre os cálculos, talvez os dois protagonistas dos clãs antagônicos se apressaram em consolidar apoio político com os Bolsonaro talvez por compartilharem esse diagnóstico difuso e frágil de um conservadorismo que nos seja intrínseco.

Inclusive, pelo que estamos vendo no Rio Grande do Sul, o bolsonarismo pode ser um grande adversário para quem tenha por objetivo o policy making. Falamos aqui de um estilo de fazer política pilotado por cruzados ideológicos (Couto, 2021) onde a desinformação é usada como arma política. O bolsonarismo, quando aliado, pode redundar em um casamento tóxico dotado de um cotidiano de práticas abusivas. A regressão na cobertura vacinal, em muito deflagrada por desinformação de DNA bolsonarista, é um outro exemplo disso que estou dizendo.

De todo modo, afinal, de onde veio esse diagnóstico do suposto conservadorismo campista? Creio que por duas vias. A primeira, deriva de uma forma de interpretar a nossa cultura política. A outra é pelos resultados das últimas duas eleições gerais, onde Bolsonaro foi o vencedor local na disputa para presidência. Irei argumentar que, tanto num caso como no outro, a afirmação do campista ser intrinsecamente conservador é uma simplificação que desconsidera o comportamento político real localmente.

Começando da cultura política local. Não podemos desconsiderar que nossa cidade tem uma cultura política conservadora consolidada. Cidade de latifúndio, Tradição Família e Propriedade, dois bispos católicos, resistência ao término da escravidão no século XIX, etc..Há um caldo cultural conservador inegável, profundo e longevo. O problema é que há também nesta mesma cidade conflitos no campo, uma vida universitária plural, abolicionismo, diferentes movimentos identitários. Se há integralistas, há comunistas. Para o empresariado organizado há igualmente uma tradição sindical dos trabalhadores do campo e da cidade. Em suma, há dialética e uma cultura política complexa[2]. Negar isto é praticar silenciamento histórico.

Se pela via da cultura política a afirmação não se sustenta,  a coisa faz ainda menos sentido na história eleitoral local neste século. O comportamento eleitoral campista não é conservador e tampouco intrinsecamente progressista. O comportamento eleitoral local é de swing voters.

Me explico.

Na tradição eleitoral estadunidense encontramos o conceito de swing states ou, em uma tradução possível, “estados pendulares”. No mapa eleitoral dos EUA temos estados mais fieis ou menos fieis aos partidos dotados de capacidade competitiva no sistema artificialmente bipolar deles. Há estados mais democratas, há os outros que são republicanos. Porém, também temos os estados pendulares, os que não foram galvanizados por nenhum dos lados da disputa. Estes estados, por suas características e até mesmo pelo momento conjuntural que vivem, são os que recebem maior investimento das campanhas presidenciais[3]. Afinal, aí não há jogo ganho. É preciso disputar.


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A partir dos estados pendulares a literatura anglo-saxã cunhou o termo swing voters que irei traduzir por eleitores pendulares. Em oposição aos core voters (eleitores convictos, galvanizados ideologicamente), os eleitores pendulares podem votar, no caso dos EUA, ora em democratas, ora em republicanos (Cox, 2024). Saindo do sistema artificialmente bipolar dos estadunidenses, creio que podemos aproveitar a explicação dos eleitores pendulares mesmo em um sistema multipartidário como o nosso. É a maneira que conseguimos tornar inteligível o voto “lulanaro” ou “bolsolula”, ou, em outros termos, o eleitor que já  demonstrou preferência tanto por Bolsonaro quanto por Lula em diferentes pleitos.

Voltando para nosso canavial, como diria o saudoso Antônio Roberto de Góis Cavalcanti, o Kapi, olhando concretamente as eleições em Campos e seus resultados, vemos comportamento pendular no eleitorado local. Se nos ativermos a todas as eleições majoritárias do ano 2000 até 2022, o que totalizou 13 eventos eleitorais[4] variando entre eleições locais e gerais, o eleitor local deu vitória aos dois lados do espectro político. Legendas diversas tiveram a preferência do eleitor: PSDB, MDB, PSL, PL, PT, PDT, seja em disputas locais ou na concorrência para cargos nacionais ou estaduais. Ainda, não obstante a representatividade concreta de diferentes forças partidárias, o eleitor local se demonstrou pautado por seus próprios interesses e por seus filtros locais. “Meu voto, minhas regras”, digamos assim. Vejamos.

Em  2002, para presidência, no 1º turno o eleitor expressou sua preferência por Garotinho como primeiro colocado neste turno da disputa, com 111 mil votos locais. Lula, em segundo, obteve 61 mil votos e Serra, pelo PSDB, veio em seguida com 18 mil. No segundo turno o campista optou por Lula, aí alinhado com o voto nacional, expressando a preferência de 162 mil eleitores, contra 52 mil votos depositados na chapa tucana.

Importante observar que nacionalmente Garotinho obteve pouco mais de 15 milhões de votos na disputa presidencial deste ano.

De todo modo, Lula ganharia novamente em Campos as eleições presidenciais seguintes em dois turnos em 2006.

Observando as eleições de 2010, no segundo turno, o eleitor local contrariou o resultado nacional. Se neste ano Dilma foi eleita contando com 56,05% dos votos válidos nacionalmente, seguida por José Serra com 43,95%, em Campos o resultado foi o inverso. Localmente a vitória foi de José Serra, com 52,85% dos votos válidos (124.141 votos) seguido por Dilma com o percentual de 47,15% (110.731 votos). Aqui Campos optou por um candidato mais à direita de Dilma em termos programáticos.

Seguindo as convicções locais, no pleito seguinte em 2014, se dependesse do eleitor campista, o segundo turno para presidente teria Dilma, pelo PT, concorrendo com Marina Silva naquele momento no PSB. Duas mulheres, ambas mais pela esquerda que Aécio Neves, PSDB. Na cidade, no primeiro turno, Dilma conquistou 87703 votos, Marina com 76786 votos e Aécio 66753, respectivamente 35,97%, 31,49% e 27,38% dos votos válidos. No segundo turno deste mesmo pleito, a vencedora em Campos foi Dilma com 54,67% dos votos válidos contra os 45,33% angariados localmente por Aécio (aqui, no segundo turno, prevaleceu a preferência contabilizada também nacionalmente que colocou mais uma disputa entre PT e PSDB no segundo turno).

Com todas estas evidências, vale mencionar as históricas eleições locais de 1988 (o que foge do recorte temporal original que fiz) e a de 2016. Em ambas houve a quebra da permanência no poder de grupos que, até então, se mantinham como herdeiros diretos do capital político de mandatários que os antecederam. Em 1988, eleição em único turno, Garotinho, candidato oposicionista, obteve 36,22% dos votos válidos, derrotando Rockfeller de Lima, de perfil situacionista, que veio pelo antigo PFL, com 29,57% dos votos computados[5]. Já em 2016, Rafael Diniz, filho do sociólogo Sergio Diniz, via PPS, obteve os convincentes 151462 votos, perfazendo 55,19% dos votos válidos, contra o candidato da “máquina”, Dr. Chicão, ex-vice de Rosinha Garotinho que amealhou 81989 votos, ou 29,88% dos votos válidos. Também em 2016 tivemos um único turno.

Com tudo que apontei, me parece insustentável afirmarmos que o eleitor local seja representante de um posicionamento ideológico fechado e muito menos conservador. O eleitor local se demonstrou capaz, faticamente, de votar em ambos os lados do espectro político. Para além disso, por vezes é capaz de contrariar tendências nacionais, obedecendo a filtros de interesses e de cultura política que lhes são próprios. O campista é um eleitor pendular, o que torna a disputa por sua preferência algo mais complexo do que podem supor clichês e modismos ideológicos da conjuntura. Portanto, progressistas locais, uni-vos! O canavial pode responder, basta ser convencido disso!

 

Referências

COUTO, Claudio Gonçalves. Do governo-movimento ao pacto militar-fisiológico. In: AVRITIZER, Leonardo; KERCHE, Fábio & MARONA, Marjorie. Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p.35-49.

COX, Gary W. Swing voters, core voter and distributive politics. In: https://leitner.yale.edu/sites/default/files/files/resources/docs/cox.pdf, acesso em 30 de abril de 2024. Paper, 23 pp.

 * Igreja Boa Morte, centro de Campos, março de 2020. Arquivo pessoal.

** Professor associado da área de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais na UFF-Campos - E-mail para contato: georgec@id.uff.br

*** Disponível em: https://x.com/swingvotedc, acesso em 21 de maio de 2024.



[1] Em perfil na Folha de São Paulo, Rodrigo Bacellar foi categórico: “Não sou bolsonarista raiz. Não gosto dos exageros. Tenho minhas críticas, mas também tenho minhas convergências”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/04/presidente-da-alerj-tem-ascensao-meteorica-faz-sombra-a-castro-e-antecipa-disputa-com-paes.shtml, acesso em 20 de maio de 2024. A matéria foi publicada em 27 de abril do ano corrente. Todavia, falando agora sobre o outro clã , Clarissa Garotinho propriamente, esta parece ser muito mais afinada com o playbook do bolsonarismo, vide até mesmo a participação da ex-deputada na infame campanha pelo voto impresso. Já seu irmão prefeito, Wladimir, optou democraticamente em deixar seu secretariado livre para apoiar quem achasse mais razoável no segundo turno presidencial de 2022.

[2] A historiadora Rafaela Machado já se pronunciou indignada a respeito. Recomendo o vídeo feito por ela disponível em seu perfil do instagram: https://www.instagram.com/p/C66KwADu45B/, acesso em 21 de maio de 2024. O tema é a Campos do século XIX e a desinformação propagada por muita gente boa de que a cidade foi a última do Brasil a abolir a escravidão. No vídeo Rafaela apresenta com dados e argumentos um cenário muito mais dinâmico e conflitivo. Como disse, há escravistas... mas, há abolicionistas! E não, Campos não foi a última cidade a abolir a escravidão. Isso é desinformação.

 

[3] Neste ano  de eleições presidenciais por lá os estados pendulares são Arizona, Geórgia, Michigan, Nevada, Pennsylvania e Wisconsin. Mais detalhes em: https://www.opeu.org.br/2024/05/18/swing-states-e-a-eleicao-presidencial-2024/, acesso em 21 de maio de 2025.

[4] No Brasil temos eleições regulares de dois em dois anos. Portanto, no período teríamos 12 eventos eleitorais. Mas, em Campos, no ano de 2006, tivemos duas eleições. Em março, para prefeitura, uma eleição suplementar dada a cassação da chapa vencedora no pleito de 2004. E em outubro de 2006 também tivemos eleições regulares para presidência, governo do estado, etc..

[5] Garotinho obteve 62953 votos e Rockfeller 51408.


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